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São
João Batista (Museu do Louvre). |
Ele foi pintor e cientista,
engenheiro e escritor. É um símbolo da
razão, mas agora os esotéricos
também o descobriram. O gênio mais versátil
da história continua a fascinar
Jerônimo Teixeira
Alojado há sete meses no topo da
lista dos mais vendidos de VEJA, e na verdade um best-seller mundial, o
romance O Código Da Vinci, do americano Dan Brown, é uma trama
envolvente de mistério, um engenhoso apanhado de enigmas esotéricos e
teorias conspiratórias sobre temas como a Ordem dos Templários e a
natureza do Santo Graal. É acima de tudo, apesar de a figura dele não
aparecer no romance, um sinal do inesgotável interesse despertado por um
homem: Leonardo da Vinci (1452-1519). Por certo não foi à toa que Brown
resolveu mencionar, já no título de seu romance, o criador
renascentista. Leonardo causou assombro em seu tempo e continua a
fazê-lo hoje. Há mais de 1 milhão de páginas na internet dedicadas a
esse personagem. A livraria virtual Amazon tem 9.900 livros sobre Da
Vinci. Sua versatilidade era espantosa. Leonardo foi engenheiro,
escritor, cientista, músico, arquiteto, escultor. Foi o melhor de seu
tempo em quase todos esses campos. Foi o melhor de todos os tempos na
pintura.
Exatamente há 500 anos, em 1504,
Leonardo podia ser encontrado diante de um cavalete dando vida ao quadro
mais famoso da história, a Mona Lisa. Costuma-se dizer que ele
foi um homem à frente de sua época. A se fiar em um ditado que
atravessou eras, segundo o qual "o que é feito com tempo, o tempo
respeita", pode-se afirmar que Leonardo da Vinci, pela eternidade de
suas obras, foi também senhor do tempo. Sigmund Freud, o pai da
psicanálise, expressou a genialidade de Da Vinci com a simplicidade de
outro gênio: "Ele foi como um homem que acordou cedo demais na
escuridão, enquanto os outros continuavam a dormir". Grupos de
pesquisadores debruçam-se sobre seus papéis a intervalos regulares, em
busca de observações sobre a natureza que só seriam retomadas séculos
depois de sua morte. Uma análise recente do conjunto de desenhos e
projetos de Leonardo encontrou mais do que uma fabulosa coerência entre
eles. Encontrou mais do que o casamento da arte e da intuição com a
lógica e a força da imaginação. Encontrou uma espetacular revelação de
princípios físicos imutáveis. "Charles Darwin descobriu os mecanismos da
evolução dos seres vivos. Leonardo descobriu praticamente todas as
inter-relações entre as partes móveis dos objetos. Foi ao mesmo tempo um
artista, um catalogador e um físico", diz a pesquisadora italiana
Barbara Balestreri. Ela completa sua idéia com uma síntese esplendorosa
da genialidade de Da Vinci: "Ele colocou o homem no controle".
É a exata sensação que se tem
quando se lembra que Da Vinci descobriu o princípio do automóvel, do
submarino, do helicóptero, das eclusas, dos tanques de guerra, dos
pára-quedas... Ele fez mais do que protótipos. Mostrou o princípio das
coisas. Com isso, Leonardo da Vinci dialogou com os gênios que o
precederam e com os que viriam depois. Albert Einstein, cuja teoria da
relatividade completa 100 anos em 2005, disse várias vezes que em suas
divagações se imaginava como Leonardo da Vinci sentado, quieto, dentro
de seu submarino sem janelas feito de madeira e latão. "Se o submarino
se movesse de forma lenta, silenciosa e sem supetões, Leonardo não teria
como saber se ele realmente se movia", escreveu Einstein. "Essa imagem é
a perfeita ilustração da teoria da relatividade." Pela teoria
einsteiniana, tudo no universo é relativo – com exceção da velocidade da
luz, que é absoluta. Todo movimento só é relevante em relação a algum
ponto de referência. "Ao tratar a luz como uma substância física nos
seus quadros e experiências, arrisco-me a dizer, não sem risco de
exagero, que Leonardo antecipou o que viriam a ser o laser e as fibras
ópticas", afirma Barbara Balestreri. Sem exagero, é possível concordar
com o crítico Kenneth Clark, um dos mais importantes estudiosos de
Leonardo no século XX: "Ele foi o homem com a mais incansável
curiosidade de todos os tempos".
Leonardo foi um homem do seu
tempo. E esse tempo foi extraordinário. Falar em Leonardo significa
falar do Renascimento – um período que os historiadores não se cansam de
reinterpretar. Como disse Freud, Leonardo acordou do sono da Idade Média
antes dos outros homens. A moderna interpretação vê a Idade Média não
como um período trevoso, mas apenas de uma certa confusão e,
principalmente, de falta de comunicação entre os diversos pólos
culturais. Nessa interpretação, Leonardo não teria propriamente
despertado mais cedo. Ele seria o herdeiro e organizador de séculos de
avanços desconexos. "O passado exercia grande autoridade sobre os
artistas do Renascimento, o que impede que sejam vistos como
'revolucionários' no molde dos vanguardistas do século XX", diz o
historiador inglês Peter Burke, da Universidade de Cambridge. É preciso
lembrar que a religiosidade renascentista foi tão forte quanto a
medieval: o mundo continuava impregnado não apenas de Deus mas de
esoterismo. Essa imagem mais matizada do Renascimento é vital para
compreender a grandeza de Da Vinci.
Nos milhares de páginas que
deixou escritas (das quais estima-se que apenas um terço tenha chegado
até o presente), Leonardo nunca questionou a existência de Deus como o
grande arquiteto do universo – o ateísmo era quase uma impossibilidade
conceitual para a época. A religião institucional, porém, ocupou um
espaço pequeno em sua vida. Com sua pouco decantada "inteligência
social", ele driblou poderosas interdições eclesiásticas e conseguiu,
por exemplo, dissecar cadáveres para estudar anatomia. A idéia de que
quisesse esconder intricadas referências heréticas em obras como A
Última Ceia, tal como sugere Dan Brown em seu best-seller, tem pouco
apoio nas evidências biográficas. Quase não há documentos que sustentem
um interesse de Leonardo pelo ocultismo ou por disciplinas esotéricas
como a alquimia. "As poucas referências à alquimia que encontramos em
seus cadernos mostram um conhecimento muito precário da matéria", revela
o pintor e doutor em belas artes pela Universidade de Barcelona Eduardo
Carreira, que traduziu Os Escritos de Leonardo Da Vinci sobre a Arte
da Pintura.
O grande mote do trabalho de
Leonardo, quer como artista, quer como inventor e cientista, foi a
observação criteriosa da natureza. Nisso ele se equipara a Newton,
Darwin e Einstein. Seus cadernos são um imenso laboratório de
pensamento. Nas notas, estudos e rascunhos dedicados à hidráulica, ao
vôo dos pássaros, ao movimento dos gatos, encontra-se um acurado
explorador da natureza. Sua inteligência mecânica ainda hoje impressiona
todos os que examinam seus desenhos de engrenagens. A comparação de
imagens obtidas nos modernos aparelhos de tomografia computadorizada com
seus desenhos sobre anatomia oferece uma espécie de revelação: Leonardo
acertou com exatidão espantosa, por exemplo, detalhes sobre a posição do
feto no interior do útero.
Mas não era preciso imaginar uma
figura sobre-humana para encarnar todos os talentos. O artista que se
desdobrava em engenheiro era uma figura comum na Renascença. O que era e
é incomum, quase milagroso, é ter todos esses talentos na intensidade em
que Da Vinci os tinha. Embora tivesse uma assombrosa habilidade
matemática, diz-se que Leonardo não criou algo que se pudesse chamar de
"teorema de Leonardo". Ou seja, apesar de ter desvendado princípios que
até então eram desconhecidos, ele não os traduziu em linguagem
matemática. É verdade. Essa viria a ser mais tarde uma obsessão dos
estudiosos. Não era ao tempo de Leonardo. "Leonardo da Vinci, o
observador verdadeiramente brilhante, não era nenhum viajante espacial,
mas um cidadão de seu próprio tempo, um período instrutivo e
fascinante", definiu Stephen Jay Gould, paleontólogo americano, em um
ensaio acerca dos estudos sobre fósseis feitos pelo gênio renascentista
(sim, Leonardo também estudou os fósseis).
É na arte de Leonardo que se
combinam de maneira definitiva sua imaginação e seu poder de desvendar e
retratar o mundo. Não chegam a quinze as pinturas reconhecidas como suas
– e foi o que bastou para inscrevê-lo entre os maiores nomes da história
da arte. Leonardo foi um pesquisador da perspectiva ("A perspectiva é
rédea e timão da pintura", anotou em seus cadernos). "Pintar, para
Leonardo, era uma operação que requeria todos os conhecimentos e quase
todas as técnicas: geometria, dinâmica, geologia, fisiologia", observou
o poeta francês Paul Valéry. A Mona Lisa é um exemplo de seu
apuro. A posição da modelo, o uso do claro-escuro, o sfumato
(literalmente, "esfumaçado": técnica de borrar os contornos da figura
para realçar sua profundidade) são conjugados ali com um efeito único.
Leonardo não inventou todas essas técnicas, mas ele as aperfeiçoou e
consolidou em uma obra que exerceria grande influência sobre a arte do
retrato nos séculos seguintes.
O sorriso é o atributo mais
famoso da Mona Lisa. Leonardo pintou muitas figuras sorridentes,
como São João Batista ou A Dama com um Arminho. Por que
apenas a Gioconda ganhou uma aura de mistério? "O mistério não está no
sorriso, mas em por que o retrato de uma mulher que não é especialmente
bonita se tornou a obra mais conhecida do mundo", diz o historiador
Donald Sassoon, da Universidade de Londres, autor de Mona Lisa – A
História da Pintura Mais Famosa do Mundo. O estudioso aponta para
uma conjugação de fatores que fizeram de uma dona-de-casa florentina um
rosto mundialmente conhecido. Leonardo levou o quadro consigo, em 1516,
quando foi para a corte do rei francês Francisco I, em Amboise, onde
morreria em 1519. Assim, a tela desde cedo se integrou ao patrimônio
artístico da coroa francesa, que depois da revolução seria incorporado
ao Museu do Louvre. A Gioconda, portanto, estava no centro cultural da
Europa – e lá foi redescoberta por poetas como o francês Théophile
Gautier. Assim como os historiadores "inventaram" a Renascença, também o
"mistério" da Gioconda foi obra do século XIX. Gautier e o crítico de
arte inglês Walter Pater atribuíram ao sorriso da moça uma qualidade
intangível e evanescente. "Ela é mais eterna do que as rochas entre as
quais está sentada", diria Pater em seu lírico ensaio sobre a Mona
Lisa. Apesar dessa característica ancestral, a Gioconda também era
"o símbolo da concepção de modernidade".
Mas a fama do quadro só
ultrapassou os círculos artísticos no século XX, especialmente depois
que ele foi roubado do Louvre, em 1911, e recuperado em 1913, ganhando
amplas manchetes nos jornais populares. A Mona Lisa acabou se
transformando para a Renascença – e talvez para a grande arte ocidental
– o que Che Guevara é para o comunismo: um pôster publicitário. Foi por
ocupar essa posição tão convencional que ela se tornou alvo costumeiro
das sátiras, citações, releituras, desconstruções da vanguarda. Sassoon
calcula que, nos anos 1970 e 1990, a Mona Lisa foi usada em média
uma vez por semana como peça publicitária. A charge política também tem
recorrido ao tema – Mao Tsé-tung, o "grande líder" chinês, e Monica
Lewinsky, a estagiária sexual da Casa Branca, estão entre as inúmeras
personalidades que já foram retratadas em pose de Gioconda. A
vulgarização esteve perto de converter a Mona Lisa em uma imagem
kitsch – a obra-prima preferida de quem não conhece nenhuma outra
obra-prima. Mas o quadro ainda atesta o gênio de Leonardo – suas
pinceladas são tão finas que até submetidas às modernas técnicas de raio
X é difícil distinguir umas das outras.
Nascido no pequeno vilarejo de
Vinci, nas proximidades de Florença, em 1452, Leonardo era filho
ilegítimo de um tabelião. Ele não teve educação formal e sabia pouco ou
nenhum latim, condição que o enchia de um certo ressentimento em relação
aos colegas mais ilustrados. "Dirão que eu, não tendo formação
literária, não posso expressar em palavras, de forma adequada, o que
desejo tratar. Mas não sabem que meus temas devem ser tratados mais pela
experiência do que pelas palavras", anotaria ele mais tarde em seus
cadernos. Adulto, foi uma personalidade polêmica no seu modo de vestir e
no comportamento chegou a ser denunciado por prática de sodomia, mas não
foi condenado. Supõe-se que ele tenha sido homossexual, mas sua
intimidade permanece misteriosa). Adolescente, foi aprendiz no ateliê de
Verrocchio. Certa vez, o mestre estava pintando um quadro sobre o
batismo de Jesus Cristo e encarregou o jovem Leonardo de completar a
composição com a figura de um anjo. Seu aluno fez um anjo tão perfeito
que Verrocchio desistiu de pintar. Ou pelo menos é assim que a história
é contada em Vidas dos Grandes Pintores, Escultores e Arquitetos
Italianos, do escritor e pintor Giorgio Vasari. O biógrafo mais
célebre do Renascimento não conheceu Leonardo – teria 8 anos quando o
mestre morreu na França, em 1519. Vasari comete equívocos flagrantes:
elogia as sobrancelhas da Mona Lisa, que as têm raspadas,
conforme a moda da época, e se refere ao afresco A Última Ceia
como se fosse uma tela. Sua narrativa já traz aquele colorido mítico que
se tornaria inseparável da figura de Leonardo: Vasari o aproxima do
divino.
O elogio trazia uma pequena
restrição à inquietude de Leonardo, que caprichosamente abandonava um
projeto antes de completá-lo para se dedicar a outro trabalho que lhe
pareceria mais atraente. Era mais uma face de sua natureza inquisitiva.
Por causa de sua inconstância, ele deixou muitos trabalhos inacabados.
Foi o caso da Batalha de Anghiari, imenso painel que deveria
ocupar uma parede da Câmara do Conselho de Florença, mas do qual
sobraram apenas alguns estudos e cópias, e da estátua eqüestre do pai de
Ludovico Sforza, duque de Milão e protetor de Leonardo de 1482 a 1499. O
projeto para essa estátua, um gigante de bronze, seria impossível de ser
fundido. Pelo menos um fracasso relativo de Leonardo sobreviveu até
nossos dias: A Última Ceia está hoje derruído porque o pintor fez
experiências com uma mistura de tintas inadequadas ao afresco. Talvez o
mais fantástico empreendimento frustrado de Leonardo tenha sido o desvio
do Rio Arno, em 1503. A tarefa foi comissionada por Nicolau Maquiavel,
futuro autor de O Príncipe, o mais célebre tratado de política de
todos os tempos. A idéia era prover Florença com um acesso ao mar –
economicamente vital naquela época de grandes navegações – e, de quebra,
dificultar o abastecimento da cidade rival de Pisa. "Era um
empreendimento moderno de modificação da paisagem, no qual se engajaram
dois dos maiores gênios do Renascimento. O projeto fracassou
principalmente porque o deslocamento de terra necessário era, se não
impossível, muito difícil", diz Roger Masters, professor de ciências
políticas do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de Da
Vinci e Maquiavel – Um Sonho Renascentista. Até em seus fracassos
Leonardo conseguiu ser extraordinário.
A compreensão da inteligência tem
progredido nas últimas décadas graças ao estudo do desenvolvimento
mental por psicólogos e psiquiatras e ao surgimento de novas técnicas de
mapeamento do cérebro. Considerada por muito tempo uma característica
inexplicável, a própria genialidade começa a ser abordada do ponto de
vista de ciências como a biologia evolucionista, que procura avaliar os
componentes genéticos da inteligência e a maneira como o ambiente influi
(ou não) na criatividade. É improvável que a ciência um dia ofereça uma
explicação cabal para o gênio de alguém que viveu 500 anos atrás. Mas,
mesmo sem entender completamente as raízes da mente extraordinária de
Leonardo, não é preciso tratá-lo como uma criatura "divina", à maneira
de seu biógrafo Vasari. Shakespeare, Newton, Mozart, Darwin, Picasso –
são muitas as grandes mentes que se excederam em um campo particular de
atuação. Leonardo os superou como um talento universal. Foi o homem mais
completo que já andou pelo planeta – mas ainda assim um homem.
A rivalidade dos gênios
Além
da Mona Lisa, outra grande obra-prima da Renascença está
completando 500 anos: Davi, escultura de Michelangelo
Buonarroti (1475-1564). A República de Florença transformou o
personagem do Antigo Testamento em símbolo: assim como o pequeno
Davi venceu o gigante Golias, a república florentina seria capaz
de enfrentar inimigos mais poderosos. Verrocchio (o mestre de
Leonardo) e Donatello representaram Davi depois da luta, com a
cabeça decapitada de Golias a seus pés. Michelangelo preferiu
retratar o momento antes da batalha – seu Davi traz ao ombro a
atiradeira com que derrubará o inimigo. Rafael e Michelangelo
foram os grandes rivais de Leonardo da Vinci. Eram mais jovens –
e mais produtivos. O pintor e biógrafo Giorgio Vasari registra a
rivalidade entre Michelangelo e Leonardo – criada, segundo ele,
pela maledicência dos florentinos. Michelangelo tinha uma
personalidade mais austera do que o extravagante Leonardo. Os
dois, porém, compartilhavam uma certa atitude de independência
artística. Caprichoso e pouco confiável quanto a prazos e
realizações, Leonardo pulou de cidade em cidade para conquistar
posições. Michelangelo serviu aos papas Júlio II e Leão X (que
pertencia à poderosa família Medici, de Florença), mas esteve
sempre às turras com eles. |
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(©
Revista VEJA)
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