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Teatro da beleza e do horror

Cena de Guerra

Roberta Oliveira

   Em meados dos anos 90, o diretor italiano Pippo Delbono soube que era soropositivo. Começaria, então, uma via-crucis em busca de uma fórmula que o “mantivesse em vida”.— Não queria morrer, ainda tinha muito o que fazer, dizer — lembra ele ao GLOBO.

   Enquanto algum tipo de alívio químico não era descoberto, seu corpo ia aos poucos se debilitando. Mas o problema era outro.

   — Estava perdendo a cabeça, havia dias em que mal saía de casa — diz Delbono.

   Houve até quem pensasse se não era o caso de ele se internar numa clínica. À internação, ele preferiu a ação e seguiu para Nápoles para fazer um workshop com internos de um manicômio, que, segundo ele, mais se parecia com um campo de concentração nazista. Por lá, encontrou Bobó, microcéfalo surdo-mudo interno há 45 anos. E não sossegou enquanto não o tirou de lá.

   — Era como se, pela primeira vez em anos, tivesse conseguido deixar meus problemas de lado para me dedicar aos problemas de outro — compara Delbono. — Era inevitável que tendo as crises que tinha não me sentisse mais à vontade entre pessoas feridas, à margem, do que com as “normais”.

   Bobó nunca mais deixou o grupo que Delbono criou em 1983 com o ator e diretor argentino Pepe Robledo e está no elenco de cinco espetáculos que a companhia mantém em repertório. Um deles é “Guerra”, peça que estréia amanhã no Teatro Carlos Gomes, abrindo a edição de 2004 do riocenacontemporânea. Este ano, o festival internacional de teatro segue até o dia 17 de outubro, ocupando quatro teatros e várias praças e ruas da cidade com quatro espetáculos internacionais, oito brasileiros, quatro performances e quatro peças em processo.

   — “I barboni” (“Os mendigos”), primeira peça que fiz depois da experiência no manicômio, e, depois, “Guerra” traçam uma linha divisória na história da companhia — analisa Delbono.

   Além de incluir Bobó no grupo, a partir de “I barboni”, apresentada em 1997, o diretor passou a misturar atores com pessoas que vivem à margem. É o caso de Gianluca Ballaré, menino com síndrome de Down que depois de ter sido aluno da mãe de Delbono passou a integrar o grupo. Ou Armando Cozzuto, jovem que teve paralisia infantil e que o diretor encontrou vagabundeando pelas ruas.

   — No início, houve quem não entendesse, quem achasse, especialmente por parte da crítica, que eu era um diretor que iria usar estas pessoas e depois jogá-las de volta num manicômio ou nas ruas — lembra Delbono, que não suporta nem a idéia de chamar o que ele faz de “teatro para deficientes”. — Não se trata disso, eu não quero pegar estas pessoas e ver se através do teatro se integram à sociedade. Quero mostrar que, através do teatro, é possível que cada um se reencontre como era na infância. Hoje, as pessoas que olham para Bobó, depois de cinco peças, vêem um excelente ator, nada além disso.

   Este olhar, o de uma criança que observa, inocentemente, uma guerra como um objeto estranho ao seu dia-a-dia e, portanto, sem preconceitos, foi o que o diretor buscou ao transformar, no ano passado, “Guerra” num longa-metragem homônimo, o primeiro de Delbono. O filme foi rodado durante a viagem que a companhia fez pelo Oriente Médio, passando por Israel e Palestina.

   — No começo, achei que “Guerra” seria um documentário sobre a nossa viagem, mas, à medida que nos deparávamos com aquela realidade, passei a fazer um filme em que a guerra é vista pelo olhar inocente de Gianluca e Bobó — diz Delbono, que, ao longo do processo, esbarrou com as opiniões que cada um tem sobre a guerra. — Houve um momento em que tive que dizer “basta!”, porque todos queriam dar palpite. Uns achavam que eu poderia ficar do lado de uns, os outros a favor dos outros, e eu não queria estar de nenhum lado.

    Já “Guerra”, a peça, é livremente inspirada na “Odisséia”, de Homero. O início do espetáculo é, como o próprio diretor admite, autobiográfico. Nele, o diretor fala de experiências pessoais ligadas à guerra. Em seguida, entram em cena tipos como uma senhora em vestido de noite, um garçom trajado a caráter, um menino com traje de marinheiro sendo levado por uma babá-enfermeira, uma cantora lírica e uma bailarina de tutu. Todas figuras normais, mas apenas na aparência, e à medida que o espetáculo se desenrola se tornam cada vez mais grotescas. Com o acelerar do corre-corre, o quadro parece ser o do Apocalipse e o próprio Delbono, no palco como ator, lendo um trecho de Buda, em que ele descreve um cenário apocalíptico, dá motivos para o espectador ter a sensação de estar assistindo ao fim do mundo.

   — “Guerra” fala de várias guerras, mas especialmente daquela que é a mais atroz, a monstruosidade que existe dentro do próprio ser humano. Dentro de cada um de nós pode haver um Deus ou um demônio, dentro do ser humano pode existir tudo. Hitler, por mais impressionante que possa parecer, também foi Buda — diz Delbono. — O problema é que, mesmo que possamos ser tantos, não sabemos aceitar o que é diferente. Isto está em nós e é o que acaba provocando as guerras.

   Assim que voltar para Modena, cidade italiana em que a companhia vem trabalhando nos últimos anos, atuando dentro do principal teatro da região, Delbono vai cuidar da turnê de “Urlo” (“Grito”), último trabalho do grupo, apresentado no Festival de Avignon deste ano, e da produção de seu próximo longa-metragem. A idéia é que boa parte dele se passe dentro do manicômio em que Bobó passou 45 anos e que está abandonado.

   — Quero cruzar a trajetória de Bobó com a de um ator que passou a vida toda interpretando Pulcinella, até porque Bobó também é um pouco Pulcinella, vocês vão ver — promete Delbono.

   O título de uma das críticas que a peça “Guerra” mereceu, “Você pode não gostar, mas não pode ficar imune”, deixa bem claro o que vem por aí.

(© O Globo)

Visite o site da Compagnia Pippo Delbono

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