LUIZ ZANIN
ORICCHIO
Em 1983, depois de um almoço em Cinecittà, o cineasta canadense Damian Pettigrew foi
apresentado a Federico Fellini pelo escritor Italo Calvino. Imediatamente, Pettigrew pediu
uma entrevista a Fellini. Oito anos depois, atendeu ao telefone e a voz do outro lado
dizia: "Venha para Roma, Damiano!" Era a inconfundível voz fininha e zombeteira
de Fellini. Os dois se encontraram em julho de 1991 e abril de 1992, e o resultado de dez
horas de conversa gravada está no documentário Sou um Grande Mentiroso, que estréia
amanhã no CineSesc.
Compreensivelmente, o maior problema de
Pettigrew foi meter a tesoura nesse material de valor inestimável e reduzi-lo aos 105
minutos do filme. O consolo foi colocar as palavras de Fellini, na íntegra, no livro Sono
un Gran Bugiardo, editado este ano na Itália pela Elleu Multmedia. Livro e filme compõem
o testamento do grande Fellini, que morreu dia 31 de outubro de 1993. São mentiras, como
ele diz, mas mentiras especiais, que o aproximam muito da verdade.
Estado - Fellini deu muitas entrevistas, mas parece que você conseguiu material inédito.
Como foi o seu relacionamento com ele?
Damian Pettigrew - Fellini tinha a tendência
a mistificar ou trivializar as coisas. Trabalhava como um escravo no set de filmagem, mas
depois de almoçar e de jantar relaxava e gostava de contar piadas. Era brincalhão,
irônico, superficial. Não conseguia levar a sério a situação de entrevistado. Para
evitar isso, preparei mais de 200 perguntas antes de me encontrar com ele. Às vezes o
repreendia. Você pode ouvir minha voz: "Fefé, você já disse isso milhares de
vezes a cada jornalista desta cidade." Como tínhamos assinado um contrato de
trabalho, pude me permitir esse tom. Ele era uma pessoa misteriosa e queria manter-se
assim. Eu apenas consegui capturar algumas facetas daquela personalidade de Mona Lisa. Mas
nas últimas entrevistas ele parecia ter compreendido que estava falando para a
posteridade.
Estado - O filme passa sua admiração por Fellini, mas não subserviência. Assim,
aspectos difíceis, como o relacionamento dele com atores não são escondidos, como no
caso de Donald Sutherland, que interpretou Casanova.
Pettigrew - Concordo com você no caso de
Sutherland, que é articulado e produz um depoimento revelador de suas dificuldades.
Infelizmente, não consegui a mesma qualidade de depoimento com os outros. Fellini dizia
que "a espontaneidade é o segredo da vida", e isso explica por que 8 1/2 é dos
maiores filmes já feitos. O problema é trabalhar num regime de 'não-improvisação
improvisada'. Isto é, com todos os detalhes sob controle e, exatamente por isso, dando
margem à improvisão. A técnica dele se parece muito com a dos grandes mestres do jazz,
Charlie Parker em especial. O jazzista, no entanto, tem apenas a si mesmo para controlar.
Ele toca e a orquestra vai atrás. No caso de Fellini, a orquestra - equipe de filmagem,
atores, produtores, amantes, esposa - pode e freqüentemente se rebela contra o
imprevisto. Seu genial Ensaio de Orquestra é prova disso.
Estado - Vendo o documentário se percebe que as idéias de Fellini sobre vida e cinema
são bem claras, apesar da complexidade. Como se ele fosse formulando essas idéias à
medida que fala, como num work in progress. Você tem a mesma impressão?
Pettigrew - É verdade. A minha estratégia de
perguntas era no sentido de desarmar a guarda de Fellini. Impedi-lo de responder como já
havia feito centenas de vezes. Em conseqüência, somos testemunhas de um pensamento que
se faz no momento mesmo em que ele fala, improvisando, em seu melhor estilo. Acho que esse
é o valor de uma entrevista filmada com um artista. Infelizmente, o que vemos em geral
são entrevistas muito programadas ou ensaiadas. Essas são boas para ler, mas não para
serem projetadas numa tela de cinema.
Estado - Dez
anos depois da morte de Fellini, como você avalia a importância da sua obra para o
cinema e a cultura contemporâneos?
Pettigrew - Primeiro, em suas
melhores obras, como 8 1/2, Roma e Amarcord, Fellini expandiu nossa compreensão daquilo
que o cinema pode ser, combinando a densidade e complexidade da grande literatura com a
leveza e poesia da grande pintura. Depois, há a questão do papel do artista na
sociedade. Refutando Platão e sua República, Fellini nos doa um mundo forjado no íntimo
de sua alma. Demonstrou como esse ego único podia se transformar num Eu universal, mas
nunca comprometendo essa visão tão pessoal com finalidades comerciais.
Estado - Quais são os seus Fellinis
favoritos?
Pettigrew - 81/2 e A Doce Vida, os
clássicos, claro. Depois A Estrada da Vida e Noites de Cabíria por sua comovente
simplicidade - é muito difícil de obter aquele tipo de simplicidade. São filmes de
imenso potencial emotivo. Roma porque é a primeira obra-prima do cinema que equivale ao
"lugar", no sentido nietzschiano do termo (hic est locus patria - aqui é o
lugar de origem). E la Nave Va é o ápice dos poderes expressivos de Fellini e uma pedra
de toque da arte moderna.
Estado - Uma questão talvez
ingênua: por que Fellini nunca realizou o projeto de A Viagem de Mastorna?
Pettigrew - Como italiano católico,
nascido em Rimini, Fellini era muito supersticioso, apesar da sua sofisticação romana.
Depois de Julieta dos Espíritos, ele queria fazer um filme sobre a vida depois da morte,
inspirado pela morte do seu guia espiritual, o psicanalista junguiano Ernst Bernhard,
decisivo no processo de criação de 8 1/2 e Julieta. Em 1966, durante a produção de
Mastorna, Fellini experimentou uma série de alucinações e pesadelos, que interpretou
como avisos de que se prosseguisse com o projeto iria morrer. A pressão foi tanta que ele
terminou por sofrer um ataque cardíaco e quase morreu mesmo. Depois disso passou a
considerar Mastorna como um projeto maldito. Mas o roteiro era tão magnífico que ele
continuou tentado a realizá-lo. Elementos de Mastorna entram em Casanova e Satyricon e
finalmente ele foi realizado, entre 1992-1993, com Vincenzo Mollica e Milo Manara...sob a
forma de uma história em quadrinhos.
Estado - O que se pode dizer dessa
busca de Fellini pela verdade através da mentira?
Pettigrew - No filme, Italo Calvino
diz que o artista é aquele que revela o grão de verdade escondido no fundo de cada
mentira. Como toda arte é uma ficção, é privilégio do artista criar a suprema
ficção, a suprema mentira que, paradoxalmente, revela a suprema verdade. A mímese é
reflexo da natureza e o reflexo nunca é a coisa real, mas a coisa inventada pelo homem. A
coisa real, isto é, a Natureza, é o caos, indiferente e impenetrável. O homem,
inventando o seu reflexo da Natureza, pode controlar esse caos e infundir-lhe suas humanas
qualidades. Mas essa operação, apesar de tudo, continua sendo uma mentira. Esse famoso
paradoxo, claro, é do tipo que Calvino e Fellini adoravam.
(©
O Estado de S. Paulo)
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