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Fellini elogia artifício e busca o verdadeiro no imaginário

INÁCIO ARAUJO
crítico da Folha

   "Fellini: Eu Sou um Grande Mentiroso" --mais vale não tomar esse título ao pé da letra. Federico Fellini não é um mentiroso na tradição de Orson Welles, em todo caso, essa que transfigura o falso em verdadeiro, que problematiza a mentira.

   A frase é pronunciada pelo próprio Fellini ao longo da entrevista concedida a Damian Pettigrew, diretor do documentário. Mas ela chega quase que por acaso, impensada. Na real, Fellini queria dizer naquele instante que, para ele, não existe diferença entre real e imaginário na dimensão da memória. Eles se confundem. Ou seja, o passado, evocado com tanta frequência no chamado universo felliniano, não significa que as coisas tenham acontecido exatamente da maneira como os filmes as representam. Quem já viu algum trabalho de Fellini sabe bem disso --o que diminui bastante o impacto da afirmação.

   Mais interessante talvez seja o fato de a memória, no autor italiano, ser onipresente e múltipla e ocupar passado, presente, futuro, de tal modo que o tempo deixa de fazer sentido --o que constitui uma bela explicação para o cinema não narrativo praticado por Fellini. Nesse nível, Fellini seria, talvez, próximo de Alain Resnais, com menos cultura e mais gênio.

   Mas existe outro nível, e Fellini refere-se a ele diretamente, quando comenta a descoberta do "Rashomon" de Akira Kurosawa. O que chamou sua atenção foi justamente a capacidade de "fotografar o ar" que viu no filme japonês. Nesse momento, podemos perceber como é profunda a ligação de Fellini com as artes plásticas, a pintura em particular, que considera a inspiração principal de seu cinema. Eis aí outra boa explicação para não se interessar especialmente por tramas. O que o mobiliza são motivos.

   O que o motiva são, em suma, as pinceladas que formam o filme, não a história. A história é uma espécie de mal necessário com o qual deve conviver para chegar ao quadro. Daí talvez Fellini ser um dos melhores enquadradores da história do cinema: onde põe a câmera, a beleza se manifesta.

   Daí, talvez, também, a reação diferente de certos atores com seus métodos. Fellini os vê como marionetes. Por vezes não precisam nem mesmo de texto: declamam números, as falas são dubladas depois. Donald Sutherland odiou tal método, tanto quanto Marcello Mastroianni o aprovava.

   Daí, igualmente, o encanto do trabalho de Fellini em estúdio, detalhado no possivelmente mais belo momento do filme, quando o cineasta discorre sobre o mar de "E la Nave Va", sobre a necessidade que sentia de um mar de plástico que, no entanto, devia ser percebido pelo espectador como o mar natural. Elogio notável do artifício, da necessidade de ir ao falso para buscar o verdadeiro.

   E assim vai este "Fellini": certos momentos luminosos o tornam obrigatório.

Fellini: Eu Sou um Grande Mentiroso (Sono um Gran Bugiardo)
Direção: Damian Pettigrew
Produção: Itália/França/Inglaterra, 2003
Com: Federico Fellini, Donald Sutherland, Roberto Benigni
Quando: a partir de hoje no Cinesesc

(© Folha de S. Paulo)

As mentiras verdadeiras de Federico Fellini

Federico Fellini

LUIZ ZANIN ORICCHIO

   Em 1983, depois de um almoço em Cinecittà, o cineasta canadense Damian Pettigrew foi apresentado a Federico Fellini pelo escritor Italo Calvino. Imediatamente, Pettigrew pediu uma entrevista a Fellini. Oito anos depois, atendeu ao telefone e a voz do outro lado dizia: "Venha para Roma, Damiano!" Era a inconfundível voz fininha e zombeteira de Fellini. Os dois se encontraram em julho de 1991 e abril de 1992, e o resultado de dez horas de conversa gravada está no documentário Sou um Grande Mentiroso, que estréia amanhã no CineSesc.

  Compreensivelmente, o maior problema de Pettigrew foi meter a tesoura nesse material de valor inestimável e reduzi-lo aos 105 minutos do filme. O consolo foi colocar as palavras de Fellini, na íntegra, no livro Sono un Gran Bugiardo, editado este ano na Itália pela Elleu Multmedia. Livro e filme compõem o testamento do grande Fellini, que morreu dia 31 de outubro de 1993. São mentiras, como ele diz, mas mentiras especiais, que o aproximam muito da verdade.

   Estado - Fellini deu muitas entrevistas, mas parece que você conseguiu material inédito. Como foi o seu relacionamento com ele?

  Damian Pettigrew - Fellini tinha a tendência a mistificar ou trivializar as coisas. Trabalhava como um escravo no set de filmagem, mas depois de almoçar e de jantar relaxava e gostava de contar piadas. Era brincalhão, irônico, superficial. Não conseguia levar a sério a situação de entrevistado. Para evitar isso, preparei mais de 200 perguntas antes de me encontrar com ele. Às vezes o repreendia. Você pode ouvir minha voz: "Fefé, você já disse isso milhares de vezes a cada jornalista desta cidade." Como tínhamos assinado um contrato de trabalho, pude me permitir esse tom. Ele era uma pessoa misteriosa e queria manter-se assim. Eu apenas consegui capturar algumas facetas daquela personalidade de Mona Lisa. Mas nas últimas entrevistas ele parecia ter compreendido que estava falando para a posteridade.

   Estado - O filme passa sua admiração por Fellini, mas não subserviência. Assim, aspectos difíceis, como o relacionamento dele com atores não são escondidos, como no caso de Donald Sutherland, que interpretou Casanova.

  Pettigrew - Concordo com você no caso de Sutherland, que é articulado e produz um depoimento revelador de suas dificuldades. Infelizmente, não consegui a mesma qualidade de depoimento com os outros. Fellini dizia que "a espontaneidade é o segredo da vida", e isso explica por que 8 1/2 é dos maiores filmes já feitos. O problema é trabalhar num regime de 'não-improvisação improvisada'. Isto é, com todos os detalhes sob controle e, exatamente por isso, dando margem à improvisão. A técnica dele se parece muito com a dos grandes mestres do jazz, Charlie Parker em especial. O jazzista, no entanto, tem apenas a si mesmo para controlar. Ele toca e a orquestra vai atrás. No caso de Fellini, a orquestra - equipe de filmagem, atores, produtores, amantes, esposa - pode e freqüentemente se rebela contra o imprevisto. Seu genial Ensaio de Orquestra é prova disso.

   Estado - Vendo o documentário se percebe que as idéias de Fellini sobre vida e cinema são bem claras, apesar da complexidade. Como se ele fosse formulando essas idéias à medida que fala, como num work in progress. Você tem a mesma impressão?

  Pettigrew - É verdade. A minha estratégia de perguntas era no sentido de desarmar a guarda de Fellini. Impedi-lo de responder como já havia feito centenas de vezes. Em conseqüência, somos testemunhas de um pensamento que se faz no momento mesmo em que ele fala, improvisando, em seu melhor estilo. Acho que esse é o valor de uma entrevista filmada com um artista. Infelizmente, o que vemos em geral são entrevistas muito programadas ou ensaiadas. Essas são boas para ler, mas não para serem projetadas numa tela de cinema.

Estado - Dez anos depois da morte de Fellini, como você avalia a importância da sua obra para o cinema e a cultura contemporâneos?

Pettigrew - Primeiro, em suas melhores obras, como 8 1/2, Roma e Amarcord, Fellini expandiu nossa compreensão daquilo que o cinema pode ser, combinando a densidade e complexidade da grande literatura com a leveza e poesia da grande pintura. Depois, há a questão do papel do artista na sociedade. Refutando Platão e sua República, Fellini nos doa um mundo forjado no íntimo de sua alma. Demonstrou como esse ego único podia se transformar num Eu universal, mas nunca comprometendo essa visão tão pessoal com finalidades comerciais.

Estado - Quais são os seus Fellinis favoritos?

Pettigrew - 81/2 e A Doce Vida, os clássicos, claro. Depois A Estrada da Vida e Noites de Cabíria por sua comovente simplicidade - é muito difícil de obter aquele tipo de simplicidade. São filmes de imenso potencial emotivo. Roma porque é a primeira obra-prima do cinema que equivale ao "lugar", no sentido nietzschiano do termo (hic est locus patria - aqui é o lugar de origem). E la Nave Va é o ápice dos poderes expressivos de Fellini e uma pedra de toque da arte moderna.

Estado - Uma questão talvez ingênua: por que Fellini nunca realizou o projeto de A Viagem de Mastorna?

Pettigrew - Como italiano católico, nascido em Rimini, Fellini era muito supersticioso, apesar da sua sofisticação romana. Depois de Julieta dos Espíritos, ele queria fazer um filme sobre a vida depois da morte, inspirado pela morte do seu guia espiritual, o psicanalista junguiano Ernst Bernhard, decisivo no processo de criação de 8 1/2 e Julieta. Em 1966, durante a produção de Mastorna, Fellini experimentou uma série de alucinações e pesadelos, que interpretou como avisos de que se prosseguisse com o projeto iria morrer. A pressão foi tanta que ele terminou por sofrer um ataque cardíaco e quase morreu mesmo. Depois disso passou a considerar Mastorna como um projeto maldito. Mas o roteiro era tão magnífico que ele continuou tentado a realizá-lo. Elementos de Mastorna entram em Casanova e Satyricon e finalmente ele foi realizado, entre 1992-1993, com Vincenzo Mollica e Milo Manara...sob a forma de uma história em quadrinhos.

Estado - O que se pode dizer dessa busca de Fellini pela verdade através da mentira?

Pettigrew - No filme, Italo Calvino diz que o artista é aquele que revela o grão de verdade escondido no fundo de cada mentira. Como toda arte é uma ficção, é privilégio do artista criar a suprema ficção, a suprema mentira que, paradoxalmente, revela a suprema verdade. A mímese é reflexo da natureza e o reflexo nunca é a coisa real, mas a coisa inventada pelo homem. A coisa real, isto é, a Natureza, é o caos, indiferente e impenetrável. O homem, inventando o seu reflexo da Natureza, pode controlar esse caos e infundir-lhe suas humanas qualidades. Mas essa operação, apesar de tudo, continua sendo uma mentira. Esse famoso paradoxo, claro, é do tipo que Calvino e Fellini adoravam.

(© O Estado de S. Paulo)

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