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Giovanni Falcone e Paolo Borsellino,
que se tornaram heróis italianos na luta contra o crime organizado |
Distantes quanto à qualidade de vida, Brasil e Itália enfrentam
problemas parecidos no combate ao crime organizado
Boris Fausto
Brasil e Itália,
aparentemente, aproximam-se mais no passado do que no presente. A
principal e óbvia referência ao passado diz respeito ao fenômeno da
imigração em massa, que deixou tanta influência no Sul do Brasil e no
Estado de São Paulo, a ponto de sua capital ser chamada, na virada do
século 20, de "cidade italiana". Ao mesmo tempo, nos dias de hoje, se a
integração de gostos culinários, de acentos lingüísticos, de inúmeros
sobrenomes trazem marca de origem, a Itália pareceria bem distante do
Brasil, em termos de desenvolvimento. Para ficar em um só exemplo, em
2001, o Brasil figurava em 65º lugar e, a Itália, em 21º, no Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), criado pela ONU. Entretanto, como ocorre
em outros casos, nem tudo se reduz à quantificação. Muitos traços, sejam
de ordem socioeconômica, sejam de ordem cultural, aproximam os dois
países. Alguns deles são decorrentes da globalização, da introdução de
novas tecnologias, de alterações do comportamento, sendo comuns,
portanto, ao mundo ocidental; outros são mais específicos e suscitam
mais interrogações. Incluem-se entre os traços mais gerais o desemprego,
a informalidade nas relações de trabalho, o consumismo, a queda da taxa
de natalidade etc.
Entre os mais específicos,
figuram as desigualdades regionais, o clientelismo associado à
corrupção, o quase domínio da mídia televisiva por duas empresas
privadas, os problemas da gestão administrativa governamental etc.
Seleciono do leque de aproximações o tema da corrupção, tomando como
base, para o caso italiano, o excelente livro de Paul Ginsborg, "Italy
and Its Discontents" (algo como A Itália e Suas Inquietações, ed.
Palgrave Macmillan), publicado em 2001. É claro que práticas
corruptoras, envolvendo figuras públicas e do mundo privado, não são
comuns apenas ao Brasil e à Itália, pois têm uma variável e longa
presença mundial. Mas, guardadas as diferenças, uma incursão no caso
italiano pode ser elucidativa dos dilemas do combate à corrupção nos
dois países e das alternativas institucionais que vêm sendo discutidas
no Brasil de hoje. Deixo de lado o tema complexo da origem das práticas
delituosas para me concentrar na questão de seu combate -um esforço que
vem sendo empreendido em ambos os países, embora com resultados
limitados. Não por acaso, quando no Brasil se iniciaram ações mais
sistemáticas contra certas práticas ilícitas -lavagem de dinheiro,
tráfico de armas e de drogas, favorecimento em licitações e em negócios
do Estado em geral-, houve seguidas referências à operação "mani puliti"
(mãos limpas), desencadeada pelos quadros mais jovens da Promotoria
Pública da Itália, a partir de 1992.
Aberrante ilegalidade
Antes, ao longo dos anos 80,
como observa Ginsborg, dois fatos novos destacaram-se na vida social
italiana: de um lado, o crescimento de uma aberrante ilegalidade, não
restrita apenas à Máfia; de outro, a firme determinação de combatê-la,
demonstrada por setores minoritários do governo. Essa determinação,
aliás, levou à morte do general de carabineiros e governador da Sicília,
Carlo Alberto dalla Chiesa, e de sua mulher, assassinados em Palermo, em
setembro de 1982. A ofensiva anticorrupção foi bloqueada por decisões
judiciais, assim como pelas iniciativas do governo socialista, liderado
por Bettino Craxi. Craxi -diga-se de passagem- foi um triste exemplo de
um personagem que, partindo de posições de esquerda, acabou processado e
condenado por práticas de corrupção, refugiando-se em Túnis, onde
morreu. Mas, a partir de um escândalo que explodiu em Milão, em 1992, a
ofensiva contra a chamada "Tangentopoli" (cidade da corrupção) se
estendeu a todo o país.
A operação "mani puliti"
produziu significativos resultados e não se deteve diante de figuras
importantes dos meios políticos e empresariais italianos, alcançando os
"intocáveis" por definição. No início, teve um formidável apoio da
opinião pública e alguns promotores ganharam justificado prestígio, como
foi o caso de Antonio di Pietro. Seu nome apareceu nos muros e
monumentos de Milão com frases do gênero "Di Pietro, você é melhor que
Pelé". Teve também seus heróis, alguns anônimos, outros bem conhecidos,
como Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, assassinados pela Máfia em
Palermo (1992) com diferença de poucos meses. Ao mesmo tempo, a ofensiva
contra a corrupção foi acompanhada de alguns erros e excessos, entre
eles o incentivo à politização do Judiciário, a inculpação de inocentes
e o vazamento precipitado de informações aos meios de comunicação. Nas
discussões da época, figurou o alcance da competência investigatória da
Promotoria Pública, diante dos dispositivos do novo Código de Processo
Penal, que tratou de restringi-la.
Declínio da investigação
Com o tempo, as pressões para
pôr fim ou amenizar as investigações vieram de todos os lados, inclusive
de setores médios da sociedade que tinham aplaudido o ataque aos
figurões, mas se sentiram desconfortáveis quando muitas de suas
práticas, entre elas a evasão fiscal, passaram a ser reprimidas. A
trajetória de Di Pietro, embora seja um caso excepcional, simboliza o
declínio da ofensiva investigatória. Após demitir-se de seu cargo, Di
Pietro ensaiou uma incursão na carreira política no auge da
popularidade, mas foi obstado por uma obscura investigação, indicando
não propriamente ilicitude, mas certas transações não transparentes
entre ele e seus amigos.
Comparar termo a termo a conjuntura vivida pelo Brasil e pela Itália não
faz sentido. Mas as aproximações são evidentes, e, por isso mesmo, o
caso italiano nos permite vislumbrar melhor as possibilidades e os
limites da luta contra a corrupção. Luta hoje muito difícil na Itália,
sob o comando de Silvio Berlusconi [premiê italiano], cujas práticas são
conhecidas e que foi figura central no ataque a magistrados intitulados
por ele "investigadores de toga vermelha". Luta também muito difícil no
surpreendente Brasil de Lula, embora Lula e Berlusconi não sejam a mesma
coisa.
Boris Fausto é historiador e preside o conselho
acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor
de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção
"Brasil 505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.
(© Folha de S. Paulo)
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