|
Antonio Negri |
ARTIGO
Negri acredita que seja melhor esquecer fatos
inconvenientes. "A memória é uma prisão." Se tiver de escolher entre a
história e o comunismo, abra mão da história.
Ele dá a impressão de ter emergido de décadas criogênicas, como Austin
Powers, ignorante de que o mundo girou durante esse tempo
JOHANN HARI
DO "INDEPENDENT"
No final dos anos 80, o
presidente italiano Francesco Cossiga descreveu Antonio Negri como
"psicopata", dizendo que ele "envenenou a mente de uma geração inteira
de jovens italianos". Negri já foi acusado de assassinar o premiê
italiano Aldo Moro e de ser "il grande vecchio" -o grande velho- por
trás das Brigadas Vermelhas, um dos grupos terroristas mais notórios a
atacar a Europa no pós-guerra antes da chegada da Al Qaeda. Enquanto
esteve preso, Negri co-escreveu a bíblia da antiglobalização, "Império".
Agora ele está solto -e vem para Londres. E eu estou no Instituto de
Artes Contemporâneas (ICA), à sombra do Palácio de Buckingham, esperando
pacientemente para ter minha mente envenenada.
"Sinto muito dizer que Antonio
sumiu", explica seu agente publicitário, constrangido. Negri é aguardado
para falar com um público de 200 pessoas no ICA dentro de uma hora.
"Enviamos um táxi para buscá-lo e ... bem... ele não estava lá. Parece
que isso é coisa que acontece."
Aproveito a oportunidade para
fazer nova tentativa de terminar a leitura de ""Império". Best-seller
inesperado, o livro foi escrito por Negri e seu amigo e colega acadêmico
americano Michael Hardt no final dos anos 90. Graças a sua floresta de
prosa sociológica insuportavelmente densa, o livro ganhou a reputação de
ser uma espécie de "Finnegan's Wake" da literatura política -um livro
muito comprado, mas cuja leitura dificilmente é concluída.
Eis uma frase típica de Negri,
escolhida aleatoriamente: "A análise da subsunção real, quando ela é
entendida como abarcando não apenas a dimensão econômica ou apenas a
dimensão cultural da sociedade, mas sim o "bios" social propriamente
dito, e quando ela se mostra atenta a modalidades da disciplinaridade
e/ou controle, rompe com a figura linear e totalitária do
desenvolvimento capitalista". Depois de 400 páginas disso, sinto-me como
se tivesse sido violentado por um dicionário de sociologia.
Enquanto me esforço pela
milésima vez para entender o que diabos quer dizer "biopoder" (e como
ele vai motivar a "turba" a "substituir a Cidade de Deus pela Cidade do
Homem"), observo um homem de terno andando em minha direção. Ele não
sorri. "Preciso de vinho", diz rapidamente, enquanto acende um cigarro.
"Vinho branco."
Olho para o
filósofo-terrorista. Aos 71 anos de idade, ele é alto e bronzeado e anda
com os ombros ligeiramente curvos. Será que esse homem de aparência
inócua foi realmente causa de tanta fúria?
Negri se tornou notório pela
primeira vez em meados da década de 70, quando a extrema esquerda
italiana começou a se fragmentar. O Partido Comunista italiano decidiu
formar um governo de coalizão com a Democracia Cristã. O fragmento da
extrema esquerda que rejeitou esse "grande compromisso histórico" foi se
radicalizando e se tornando mais sangrento e passou a defender a
revolução imediata. Negri era o guru do novo movimento em favor da
"guerra civil permanente" e da "ilegalidade de massa".
Negri identificou-se com os
manifestantes violentos que escondiam o rosto por trás de capuzes de
esqui. Ele escreveu: "Vivo a vida do franco-atirador, daquele que se
afasta da norma, do criminoso, do trabalhador que não comparece ao
trabalho. Cada vez que coloco meu capuz, sinto o calor da comunidade
proletária que me cerca. Cada ato de destruição e sabotagem me parece
uma manifestação de solidariedade de classe. O risco eventual não me
incomoda -em lugar disso, me enche de excitação febril, como um homem
que aguarda sua amante. A dor do adversário não me incomoda".
Negri sorri quando lhe entrego
seu vinho. Numa declaração que ficou famosa, Michel Foucault disse certa
vez que Negri foi encarcerado pelas autoridades italianas, em 1979, "por
ser um intelectual". Então dou início à entrevista tentando esclarecer
uma dúvida que me atormenta. Que crimes Negri de fato cometeu? Ele foi
preso apenas pelo delito nebuloso de "liderar uma organização
subversiva". Seu grupo, o Autonomia Operária, cometeu 174 ataques a
civis e 206 assaltos; portanto, Antonio, de quais desses atos você tomou
parte?
Ele me olha atentamente,
traindo um leve desprazer. Em voz neutra, responde: "Nunca atentei
contra a vida de ninguém". Então, dando de ombros, diz a seu tradutor:
"Fui acusado de ter cometido assaltos". A acusação tinha fundamento? Ele
dá uma longa tragada em seu cigarro.
"Roubar dinheiro, se é
necessário, posso compreender." Espero que ele continue, mas a frase
fica solta no ar, como a fumaça de seu cigarro que se esvai. Você
assaltou bancos? "Brecht falou que é difícil saber qual é o crime maior,
se é fundar um banco ou assaltá-lo", ele responde. Mais espera, mais
fumaça. Negri empurra os óculos para o alto da cabeça com o dedo médio
em riste. "Concordo com Brecht", diz, acenando com a mão como se
quisesse me empurrar fisicamente para outra pergunta.
Estou prestes a tentar mais
uma vez, mas somos interrompidos por uma mulher irada. "Você viu isso?",
ela diz a Negri, em tom de voz peremptório. Ele olha para mim, perplexo,
como se isso fizesse parte da entrevista. Horrorizado, me ocorre que a
mulher pode ser parente de uma das vítimas de Negri. "E então, viu?",
ela repete, brava. Só então eu me dou conta da placa de "proibido
fumar". Negri não olha para ela, mas coloca o cigarro no cinzeiro.
Apaziguada, a funcionária do ICA se afasta. Negri pega seu cigarro
novamente, volta a fumar e acena com a cabeça para que eu continue.
Está claro que ele não quer
falar dos anos 70. Ele insiste que não renuncia a nada e não lamenta
nada, mas tampouco quer oferecer qualquer justificativa. Termina por
dizer: "Foi necessário reagir no mesmo nível que a polícia". Finalmente
temos algo como uma explicação. Para ser justo com Negri, seu grupo não
protestava contra um Estado liberal e democrático normal. Na época em
que ele se tornou politicamente ativo, a polícia, as Forças Armadas e o
Judiciário italianos estavam repletos de pessoas da extrema direita,
nostálgicas de Mussolini, que, em conluio com a CIA, utilizavam táticas
de Estado policial. Elas tomaram como alvo os movimentos de esquerda de
base ampla da Itália, que ainda comandavam 35% dos votos, e, como
hoje sabemos, chegaram a
lançar ataques de terror que eram atribuídos aos manifestantes.
Mas talvez as raízes da filosofia de Negri se encontrem num passado
ainda mais distante. Ele foi criado na década de 30 em Pádua, na época
uma das partes mais pobres da Europa e mais infestadas de padres. Seu
pai, que trabalhava para a Câmara Municipal da cidade, foi um dos
fundadores do Partido Comunista Italiano, em 1921, e pagou por isso com
sua vida. Fascistas locais espancaram e humilharam a família, e
finalmente, quanto Antonio tinha dois anos, assassinaram seu pai. "Eles
o forçaram a beber óleo de rícino", explica Negri. "É como beber óleo de
motor sujo. Provoca intoxicação do sangue, esvazia a pessoa."
Ele acende outro cigarro. "E
assim ele morreu." Eu me pergunto como, em vista desse inferno pessoal,
ele consegue trivializar o fascismo tão prontamente como o faz. Em um de
seus livros recentes, Negri chega ao ponto de definir o fascismo como
"todas as forças que se interpõem ao desejo e buscam bloquear sua
emergência e expressão". Isso não é a política de um adolescente de 13
anos? "Você faz parte disso!" ele responde repentinamente. "Você ajuda a
vender meus livros! Então você é parte disso. Você não pode negar sua
responsabilidade."
Minha responsabilidade pelo
que, exatamente? Negri abre a boca para responder e solta um chiado
baixinho. Levo alguns segundos para me dar conta de que isso, na
realidade, é uma risada. Não sei de que ele está rindo, mas me junto a
ele, um pouco nervoso. Em pouco tempo estamos rindo abertamente, e me
sinto perdido numa névoa de incerteza. "Mais vinho, por favor", diz ele,
de repente. "Mais vinho."
Quando volto do bar, parece
que já é hora de passarmos para seu livro "Império". Em 1983, Negri
conseguiu fugir para Paris, onde bebeu na fonte de intelectuais
franceses como Jacques Derrida. Quando retornou voluntariamente à prisão
na Itália, em 1997, não deixou para trás o jargão acadêmico
freqüentemente incompreensível da margem esquerda do Sena. "Império" foi
saudado como um reformular do "Manifesto Comunista" para o século 21,
mas é escrito com toda a paixão lúcida de um manual de computador mal
traduzido. George Monbiot, um dos mais importantes intelectuais do
movimento antiglobalização, admitiu: "Existe uma brincadeira que faço
com meus amigos e que consiste em abrir esse livro em qualquer página,
aleatoriamente, colocar o dedo sobre um parágrafo e ver se você consegue
decifrar o que ele quer dizer". Ele acrescenta, generoso: "Negri tem
algumas coisas importantes a dizer. Eu só desejaria que as dissesse com
mais economia de palavras".
Entretanto, apesar do
palavrório de leitura difícil, é possível identificar algumas
continuidades com a filosofia anterior de Negri. Ele ainda se descreve
como comunista e ainda convoca à revolução. Em alguns momentos dá a
impressão de ter emergido de décadas criogênicas que teria passado
congelado, como Austin Powers, ignorante do fato de que o mundo
continuou a girar durante esse tempo. No entanto reconhece algumas
transformações. Negri acha que hoje todos nós estamos vivendo numa
condição chamada "Império". Não se trata do imperialismo dos EUA; é uma
rede densa e autônoma de poder capitalista que passa por cima de
qualquer Estado-nação. O "Império" exerce seu controle por meio do
"biopoder", uma forma sutil de manipulação que contamina nossos cérebros
e nos leva a internalizar os valores do capitalismo. Vivemos num mundo
como o de "O Show de Truman", em que tudo virou falso, "subordinado ao
capital", transformando-nos em joguetes sem vontade própria. Os cidadãos
das democracias liberais se crêem livres quando, na verdade, vivemos em
totalitárias "sociedades de controle", numa imensa "fábrica social".
Ou, pelo menos, é isso que
acho que Negri está tentando me dizer. Ele acredita que o "Império" seja
um triunfo, um avanço positivo na história. Assim como Marx saudou a
vitória do capitalismo sobre o feudalismo, Negri diz que a esquerda deve
saudar o "Império" porque este varre longe os velhos nacionalismos e
cria um espaço para a oposição ao capitalismo organizar-se em nível
global. A globalização rompeu a "jaula infernal" do Estado-nação, e nós
deveríamos nos alegrar.
Pouco a pouco emerge um
"Contra-Império", feito de desiludidos, que resistem ao "Império" -desde
revolucionários sul-americanos até fundamentalistas islâmicos. Em breve
eles vão se levantar e instituir a "cidadania global". Como faz com
freqüência, Negri começa a elogiar "os combatentes comunistas e
libertários das revoluções do século 20", como se não houvesse
contradição entre comunismo e libertação.
Tento pensar em uma maneira
educada de lhe recordar do fato de que cada revolução comunista do
século 20 conduziu à tirania e às mortes em massa. E, também, em uma
maneira simpática de dizer que o comunismo traiu os valores democráticos
da esquerda. Não consigo. Acabo falando diretamente, de maneira
estabanada. "Esses regimes comunistas estão esperando por uma revisão
histórica. É possível que não sejam vistos de maneira tão negativa no
próximo século", diz ele, como se isso fosse perfeitamente óbvio.
Negri recentemente descreveu a
União Soviética como "uma sociedade atravessada por instâncias
extremamente fortes de criatividade e liberdade", o que é mais do que
ele jamais disse em favor de qualquer democracia. Ele chega a afirmar
que a União Soviética caiu porque foi bem-sucedida demais. Chamo a
atenção para isso, e ele responde: "Agora você está falando de memória.
Quem controla a memória? Confrontados com o peso da memória, precisamos
ser irracionais! A razão equivale ao cartesianismo eterno. A coisa mais
bela é pensar "contra", é pensar "novo". A memória impede a revolta, a
rejeição, a invenção, a revolução".
Ele se reclina para trás, como
se tivesse rebatido de maneira brilhante qualquer crítica possível ao
comunismo. Então será que está dizendo seriamente que não deveríamos
nunca olhar para a história, que a esquerda deveria seguir adiante como
se o comunismo fosse um grande sucesso, que não deveríamos repensar
nossos valores? "Veja bem", diz Negri, "a verdade é uma ação coletiva
empreendida por pessoas que fazem campanha juntas e se transformam".
Isso não parece corresponder de maneira alguma à pergunta que lhe fiz,
mas então me recordo da leitura de seu ensaio "Em louvor à ausência de
memória". Quando o li, imaginei que não o tivesse compreendido
corretamente, mas agora fica claro que Negri realmente acredita que é
melhor não nos recordarmos de fatos inconvenientes, é melhor "conservar
um ponto de vista subjetivo ... porque a memória embrutece o espírito. A
memória é uma prisão". Se você tiver que escolher entre a história e o
comunismo, abra mão da história.
Sinto que não consigo engolir
mais nada. Nenhum dos problemas reais do mundo, desde a pobreza até a
tirania, passando pelas transformações climáticas, é discutido na obra
de Negri, exceto para afirmar que os pobres são "mais vivos", que os
cidadãos das democracias liberais vivem sob a "tirania real"... Desisto.
Não é apenas que este pregador do "Império" não tenha roupas -ele vive
numa colônia nudista intelectual. Existem alguns escritores importantes
antiglobalização, como Monbiot e Joseph Stiglitz. Mas Antonio Negri está
tentando manter vivo um paciente, o marxismo, cujo coração parou de
bater há muito tempo.
Então é para cá que o marxismo
revolucionário vem para morrer. Ele foi reduzido a um obscuro jogo de
salão para nostálgicos burgueses envelhecidos, jogado a poucos metros do
Palácio de Buckingham por um velho terrorista que quer que percamos
nossa memória.
Tradução de Clara Allain
(© Folha de S. Paulo)
|