31/07/04
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Cena de O Leopardo |
Jaime Biaggio
Com o lançamento em DVD, pelo selo Versátil, pela primeira vez “O
leopardo”, de Luchino Visconti, está disponível para fruição caseira no
Brasil. E, não, essa afirmação não se deve ao esquecimento de que o
filme já tinha saído em vídeo por aqui. “O leopardo” de Visconti
continuava inédito: a versão disponibilizada em VHS nos anos 90 era a
falada em inglês, com um pouco mais de duas horas de duração, e, como
Visconti diz num texto que consta do generoso set de extras, ele jamais
se responsabilizou por ela. Agora, sim, é o filme como o diretor assinou
embaixo: em italiano, com as três horas e cinco minutos originais.
E que a frase “um texto que consta do generoso set de extras” não
desanime o conhecedor dos DVDs da Versátil, distribuidora cujo catálogo
é basicamente de clássicos do circuito de arte, com ênfase no cinema
italiano. É verdade sobre os discos dessa companhia que geralmente,
entre os extras listados na contracapa, 80% são meramente texto na tela
da TV. Mas não é o caso aqui: há um disco só de extras, do qual constam
um documentário de uma hora, um programa de TV de cerca de 20 minutos,
uma entrevista com o produtor Goffredo Lombardo, vários cinejornais e
até o depoimento em vídeo de um professor da USP sobre a relação íntima
que o filme guarda com a arte italiana do século XIX.
Versão integral só circulou em cinema
O resultado é o melhor possível (pela primeira vez, um DVD nacional
realmente traz à memória os discos da Criterion Collection, companhia
americana que é cult entre cinéfilos com suas edições
caprichadas de clássicos do cinema — “O leopardo”, inclusive). E, claro,
acima de tudo, está a oportunidade de se ver o filme numa versão antes
só vista aqui em cinemas, no relançamento promovido pela Pandora no
começo dos anos 90. Em 1963, ano do lançamento original, a versão que
circulou fora da Europa foi a de metragem reduzida, com 40 minutos
cortados. Foi essa a que circulou nos EUA, dublada em inglês, e saiu em
vídeo no Brasil.
No set de “O leopardo”, o registro dos diálogos foi feito em diversas
línguas, como era comum em produções italianas, especialmente as que
empregavam atores estrangeiros como esta, protagonizada pelo americano
Burt Lancaster, com o francês Alain Delon num papel primordial.
Lancaster só falou inglês no set e, portanto, ironicamente, apenas na
versão dublada em inglês ouve-se a sua voz. De resto, mesmo a versão em
italiano é dublada: não se registrava som no set. Assim mesmo, o próprio
diretor americano Sydney Pollack, que coordenou a dublagem em inglês,
concorda que ela faz de “O leopardo” outro filme, e pior.
A morte lenta da aristocracia italiana
— Um filme italiano, sobre a história italiana do século 19, falado em
inglês simplesmente soa falso — diz ele no documentário. — E o fato de
só nessa versão se ouvir a voz verdadeira de Burt quer dizer muito
pouco, porque é uma interpretação muito silenciosa. E ele também errou
na dublagem, ao retirar o tom aristocrático que o ator italiano dá ao
personagem.
O “leopardo” Don Fabrizio Salina,
fortemente inspirado no avô do autor do romance original, Giuseppe
Tomasi Di Lampedusa, é um aristocrata siciliano vivendo a época da
unificação italiana — o chamado “Risorgimento” — em que sua classe
perdeu grande parte do poder para a burguesia, numa sucessão de acordos
para impedir que os republicanos de Garibaldi tomassem o poder (a
frase-chave do romance e do filme é a afirmação, feita primeiramente por
Tancredi, personagem de Delon, que “as coisas precisam mudar para
poderem continuar as mesmas”).
Visconti era também
aristocrata (era conde), mas comunista convicto. O filme reflete isso.
Por um lado, é perfeccionista ao extremo na construção dos sets e na
decoração de cena (se uma cortina era de seda na história, era
inadmissível para o diretor que a cenográfica apenas imitasse seda — e
ele sempre escolhia a mais cara). Por outro lado, o tom do filme, embora
melancólico, não é exatamente de lamentação pelo fim do mundo do
“leopardo” Don Fabrizio.
(©
O Globo)
A
frase do Leopardo é do sobrinho |
ELIO GASPARI
Há algum tempo não acontecia coisa tão boa como o
lançamento do DVD do filme "O Leopardo", de Lucchino Visconti.
Primeiro, porque é um dos melhores filmes de todos os tempos, fiel
transposição de um dos maiores romances de todas as épocas,
escrito pelo siciliano Tomasi di Lampedusa. Segundo, porque o DVD
traz as três horas originais da obra. A edição que foi aos cinemas
em 1963, mutilada, tinha duas horas e meia.
"O Leopardo" conta a história de Fabrizio (Burt Lancaster),
príncipe de Salinas durante a revolução que resultou na unificação
da Itália, em 1861. A trama é animada por um sobrinho astucioso
(Tancredi-Alain Delon) e por sua linda noiva (Angelica-Claudia
Cardinale), filha de um burguês emergente.
Aristocrata e comunista, Lucchino Visconti tinha paixão
pelos detalhes. Seus cenários são um passeio na história das artes
e dos gostos. Visconti foi mais comunista do que aristocrata ao
colocar na boca de Salinas a frase "algumas coisas precisam mudar,
para continuar as mesmas". Versão requentada de um provérbio
francês, ela colou no príncipe.
Salinas nunca disse isso. Se o tivesse dito, sua monumental
figura teria sido corroída pelo cinismo dos personagens de autores
medíocres. A frase ("Se queremos que tudo continue como está, é
preciso que tudo mude") é de seu sobrinho, jovem, insolente e
pobre. Nele, vai como uma luva.
"O Leopardo" é uma aula sobre a grandiosidade do atraso em
geral e da Sicília em particular. A frase de Salinas é outra, do
tamanho da obra-prima de Lampedusa:
"Tudo isso não deveria poder durar; mas vai durar, sempre; o
sempre humano, é claro, um século, dois séculos...; e depois será
diferente, porém pior".
Ao esplendor do filme, junta-se a existência de uma
preciosa tradução de "Il Gattopardo" para o português, feita por
Marina Colasanti e publicada em 2000. Parece impossível, mas o
livro é melhor que o filme.
(©
Folha de S. Paulo) |
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