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Toni Negri fala da nova guerra fria

Toni Negri

 

Para o filósofo, a guerra no Iraque é a fachada da disputa entre os EUA e a Europa

Leneide Duarte-Plon

   O filósofo italiano Antonio Negri, autor do livro "Império", uma espécie de bíblia dos alter-mundialistas, escrito com um ex-aluno, Michael Hardt, fez uma grande viagem à América do Sul, em novembro de 2003, quando visitou a Argentina e o Brasil. Ficou impressionado com o que viu. Um governo de esquerda no Brasil destacando-se na cena internacional, movimentos sociais ativos na Argentina.

   Acusado de ser o mentor intelectual das Brigadas Vermelhas, Negri se exilou na França por 14 anos. Resolveu voltar à Itália, em 1997, foi preso e julgado e até 2002 cumpriu prisão domiciliar. No ano passado, Negri readquiriu sua liberdade plena. Hoje viaja pelo mundo dando conferências e cursos e vendo de perto os movimentos sociais que tanto o entusiasmam.

   Nesta entrevista, de sua casa em Roma, por telefone, o filósofo marxista analisa o governo Lula, fala da Argentina, da configuração do mundo pós-guerra do Iraque e da construção da Europa, que, segundo ele, os Estados Unidos querem impedir.


Sobre o Fórum Social Mundial, o senhor disse ao jornal "Le Monde": "É um momento fundamental na construção de um contra-império. Faz anos que eu não via num movimento social essa capacidade e inteligência para compreender a violência do poder e preparar continuamente de maneira tão imprevisível estratégias de lutas novas e inventivas". Como avalia o governo do PT ?

Toni Negri:
O PT representa algo de totalmente imprevisível porque era um governo de esquerda tradicional que se baseava em forças de esquerda também tradicionais. E, no entanto, o que foi feito é um enorme esforço de inovação, de invenção e de experimentação política. O PT começou imediatamente a falar em nível mundial, algo extremamente importante. Ninguém esperava isso. Meu julgamento sobre a política do governo Lula é absolutamente positiva.

É evidente que os problemas do Brasil -e os da América Latina em geral- são enormes e que não é em alguns meses que se vai resolvê-los. Mas é também evidente que a única maneira de resolvê-los é procurar uma solução a nível mundial. Nesses países, a revolução não é possível, ela já não era possível na União Soviética, na América Latina então... Seria completamente estúpido imaginar um futuro revolucionário para países como o Brasil ou a Argentina, e estou muito zangado com certas camadas da esquerda local que não entenderam nada do que Lula procura fazer, do que Kirchner procura fazer.

Tem-se a impressão de que elas perderam a capacidade crítica. Compreender a decisão do governo argentino de não pagar a dívida, eis o que é importante! Compreender que isso não teria sido possível sem o apoio do governo brasileiro. Compreender que para bloquear Cancún, isto é um projeto imperial violento e injusto, era preciso obter a aliança da Índia e da China -e aí também foi através de Lula que isso foi possível.


Quer dizer que o senhor aprova 100% a política interna de Lula?

Negri:
Eu não seria capaz de dizer muita coisa sobre a política interna dele porque não conheço suas posições e realizações tão bem quanto a política externa. Mas acredito firmemente que os problemas do Brasil são insolúveis a não ser que a comunidade internacional faça um verdadeiro esforço. A escravidão ainda não acabou, o Brasil, infelizmente é um país escravagista, um país no qual a cor da pele determina a vida das pessoas e isso não mudará se não se fizer uma convergência muito ampla das forças políticas novas. Tenho a impressão de que o governo Lula vai por esse caminho.


O Brasil é mesmo um país escravagista?

Negri:
Em Brasília, só me apresentaram um negro: Gilberto Gil. Os negros representam 70% da população, não ? Eles não têm nada, vivem na miséria. Jamais uma revolução tentou se aliar aos negros. Nos Estados Unidos, houve movimentos negros, no Brasil não. A esquerda brasileira tem a consciência tranqüila. Ela não pensa nisso, prefere não pensar.


O senhor encontrou no Brasil Marco Aurélio Garcia, um dos articuladores da política externa do governo Lula. Além dele, esteve com o líder do MST, João Pedro Stédile, e com Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo. Qual a impressão que lhe causou cada uma dessas pessoas?

Negri:
Prefiro não comentar esses encontros estritamente pessoais.


Como o senhor vê a sociedade civil argentina depois da grande crise que arruinou o país?
Negri:
Com a crise, surgiu uma espécie de insurreição. O governo Kirchner conseguiu estabelecer um diálogo com as forças populares e foi sobre essa base que ele pôde pedir ajuda aos países capitalistas centrais mantendo uma certa abertura democrática no país. E quando falo de abertura democrática não falo somente da representação política tradicional, mas dos movimentos, da capacidade excepcional dos "piqueteros" e dos outros, das assembléias, das organizações de bairros e de vilas, de construir um outro discurso e outras práticas políticas no seio da sociedade argentina.

Acho que a única possibilidade de sair disso tudo é a construção do Mercosul, uma unidade política entre um certo número de grandes países, Argentina, Brasil e os andinos. Os Andes são importantes: lá também parece-me que acontece uma verdadeira revolução social, profunda, a partir de certas reivindicações dos nativos. Talvez seja a primeira vez que os índios ousam se levantar contra as oligarquias locais.


O senhor fala da Bolívia?

Negri:
Falo da Bolívia, da Colômbia… A eleição do prefeito de Bogotá é um sinal importante. Mas falo também do Uruguai, do Paraguai, do Peru e até do Equador: há movimentos muito interessantes, mesmo se são evidentemente ainda frágeis e menos visíveis que os do Brasil e da Argentina. Volto ao que dizia no início, que Lula interpretou uma virada histórica essencial: não é simplesmente o representante da esquerda tradicional, mais ou menos interna à sociedade civil e que segue uma concepção muito pragmática da democracia.

Ele é alguém que compreendeu que lutas e movimentos sociais estão acontecendo e que uma transformação social profunda está ocorrendo, não apenas ao Brasil e na Argentina, mas em toda a América do Sul -que recusa agora ser apenas o lugar onde os americanos vêm fazer seus negócios sujos e que pede a dignidade política e social que sempre lhe foi negada.


Como Lula pode fazer um governo realmente de esquerda e seguir as receitas do FMI?

Negri:
O Brasil está muito distante da Itália para que eu possa dizer -minha viagem durou apenas um mês. Mas estou certo que todos os governos da América Latina acabarão por aprender com Lula o que significa fazer uma política ativa e tornar-se um verdadeiro ator político na cena internacional. É preciso parar de ser vítimas. É preciso expressar-se como homens capazes de decidir seus próprios destinos e o do país. Só se precisa disso, e contudo é uma mudança enorme. Alguns chamam a isso uma revolução.


Seu percurso é dramaticamente ligado à história contemporânea da Itália. Como o senhor avalia o governo atual de seu país?

Negri:
Berlusconi representa uma experiência extremamente interessante do ponto de vista da ciência política. A Itália tem uma história que foi populista, fascista -ela inventou o fascismo- e hoje está inventando o populismo midiático. Berlusconi é isso: um homem de televisão que dirige um país a partir de técnicas de marketing, de gestão de imagem -a começar pela sua. Mas a saúde do país é outra coisa: o clima social está em ebulição, as pessoas vivem mal.

A Itália hoje é um país no qual as lutas -operárias, cidadãs, sociais- estão surgindo, um país onde se vêem programas de organização pós-socialistas importantes e amplos. Estou ao mesmo tempo pessimista sobre a situação política do país e bastante otimista diante dos movimentos populares de protesto que tendem a crescer cada vez mais.


Muitos viram na invasão do Iraque uma ação dirigida contra a ONU. A Organização das Nações Unidas ainda tem um papel e qual é ele num mundo em que os Estados Unidos se autorizam a fazer "guerras preventivas"?

Negri
: Não, eu não acho que foi uma guerra contra a ONU. Para mim, independentemente dos pretextos usados para justificá-la, a guerra do Iraque teve características de um golpe de Estado. Foi um golpe de Estado com implicações complexas, por exemplo, contra a Europa, contra o euro, contra a idéia de um espaço europeu ao mesmo tempo financeiro, comercial, monetário e político capaz de ameaçar uma ordem mundial até então centrada nos EUA. A guerra no Iraque é a fachada visível de uma nova guerra fria, agora entre os Estados Unidos e a Europa. E isso não pode ser compreendido sem o roteiro imperial.

A função da ONU já estava provavelmente esgotada antes da guerra. A ONU foi totalmente incapaz de impor um número infinito de resoluções relativas ao conflito israelense-palestino. Ela não soube intervir nos genocídios mais terríveis. A estrutura está morta há muito tempo, sua eficácia é atualmente nula, é preciso reconhecer. A ONU é uma organização de nações, que sentido ela pode ter ainda num contexto já totalmente globalizado?


Qual será o futuro para as nações sem a ONU?
Negri:
Infelizmente não sou vidente, não faço profecias! Talvez tenhamos a vitória das forças democráticas no nível global, quer dizer a derrocada da linha atualmente imposta pelo governo americano, a construção de uma ordem global imperial na qual a reconstrução das Nações Unidas teria um sentido -sabendo-se que isso não seria mais a União de nações num sentido estrito. O que é atualmente visível é que o mundo está impregnado de forças democráticas poderosas: são elas que poderão decretar o fim do poder das nações, do egoísmo das elites capitalistas, dos interesses do capital. A nova organização mundial deverá ser uma organização democrática das multidões e não dos Estados-nações.


Quando o senhor escreveu "Império", os Estados Unidos ainda não tinham vivido o 11 de Setembro. Como esse atentado muda o mundo?

Negri:
De fato. Mas acho que o governo americano já tinha estabelecido um novo programa de antecipação da guerra que passava pela definição de uma capacidade de intervenção no mundo inteiro e por um programa que levava em conta a constituição do Império. Considero o 11 de Setembro como algo que aconteceu num contexto que tinha sido já amplamente antecipado e que causou uma reação que se pode considerar como um verdadeiro golpe de Estado. O 11 de Setembro em si é uma coisa horrível, é evidente. Mas quero crer que os Estados Unidos fizeram dele um pretexto para um golpe de Estado em escala mundial. Isto é, o momento de resolver o verdadeiro problema que se colocava : quem comandará o Império? Quem vai ser o dono da soberania no Império?


No seu livro o senhor diz que o Império não é americano, "o Império é capitalista, é a ordem do ‘capital coletivo’, esta força que ganhou a guerra civil do século XX". Viveremos já a quarta guerra mundial como pretende a doutrina Bush, que considera a guerra fria como tendo sido a Terceira Guerra Mundial?

Negri:
Não sei se estamos na terceira, na quarta ou na quinta guerra mundial e não sei se isto interessa. Mas repito: o Império que tentei descrever depois de analisar sua constituição e seu funcionamento não são os Estados Unidos. Não se pode reduzir o Império ao imperialismo americano, mesmo se ele participa do Império, evidentemente. O que está em jogo atualmente na escala do Império é um novo tipo de soberania. E os Estados Unidos tentam se apropriar dessa soberania -daí o interesse de uma guerra preventiva ou, infelizmente, efetiva, sem fim, em escala mundial.

É dentro do capitalismo que se confrontam as forças que procuram se apropriar do poder imperial: como na Antiguidade, os monarcas e as aristocracias se chocam. As duas primeiras guerras mundiais eram ainda essencialmente guerras entre Estados-nações. Hoje, o Império não é nem o bem nem o mal, é uma outra estrutura mundial -uma estrutura que enterrou definitivamente a velha estrutura dos poderes, das prerrogativas e das fronteiras nacionais. O espaço não é mais o mesmo. E as guerras, reais ou virtuais, de baixa ou de alta intensidade, não são mais as mesmas. Mas os mortos e o sofrimento se assemelham ao que foram sempre: uma barbárie.


Em "A Europa, a América, a guerra", o filósofo Étienne Balibar pensa uma Europa que faria um contrapeso à potência americana. Os Estados Unidos têm uma pretensão de soberania universal além de um projeto imperialista, como pensa Balibar?

Negri:
Sim, penso que os Estados Unidos têm uma pretensão de soberania universal, mas a partir de um projeto que se mantém imperialista. Por isso, a construção da Europa é essencial. A Europa deve ser aberta, ela não deve se pensar como uma super-nação. Deve, ao contrário, escolher a via do federalismo, um federalismo aberto que não procura unificar e reduzir as diversidades, o poder das singularidades sob o jugo de uma entidade de Estado soberano.

Em suma, um verdadeiro pluralismo, a federação das singularidades. Penso, realmente, que o projeto europeu pode ser uma abertura política importante para o mundo e transformar-se num "experimentum", uma tentativa de governo democrático de um novo tipo.


Em que termos pode ser feita a reestruturação das instituições e do direito internacional ?

Negri:
Não acho que possa haver um novo direito internacional. Existe um direito imperial, interior ao Império. É necessário um direito democrático e cosmopolita real, um direito que não tenha como objetivo manter e assegurar a coexistência pacífica das nações, mas construir uma democracia global sob a pressão de grupos democráticos que existem dentro do próprio Império.


Na revista "The New Republic", o jornalista Andrew Sullivan escreveu que a principal potência que se beneficiará com a construção da Europa é a França. Os americanos querem destruir a França para destruir a Europa?
Negri:
É mais que evidente que os EUA fazem tudo para destruir a Europa, faz 50 anos que eles tentam impedir a construção da Europa. No "New York Times", eles exultavam mais com o fracasso do projeto de constituição européia do que com a captura de Saddam. Por outro lado, é verdade que a França procura representar a Europa e se comporta com uma certa arrogância, mas não penso que seja uma solução. A Europa é um projeto mais complexo e mais vasto que a realidade da França. Não se pode limitar ao clássico confronto de nações soberanas.


Os americanos vão conseguir dobrar a Europa?

Negri:
Não sei mas de fato, se não houver um movimento parecido com o que indica Etienne Balibar, isto é, democrático radical, não somente na Europa, mas no mundo inteiro, é possível que eles consigam.

Leneide Duarte-Plon é jornalista e vive em Paris.

(© Trópico)

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