Veneza continua a ser Veneza |
Michael Kimmelman
Do New York Times VENEZA, Itália
Depois de dias de pesquisa e
aprendizado, com os olhos embaçados mas ainda otimista, tudo o que uma
pessoa pode fazer em relação à Bienal de Artes de Veneza é dar de
ombros, respeitosamente. Um dinamarquês aponta para o trabalho de dois
conterrâneos, mas mantém suas reservas (mesmo em padrões dinamarqueses)
em relação ao festival. Um francês gaguejou e pigarreou quando lhe foi
perguntado se algo o agradou, mencionando finalmente a instalação de
Annette Messager: uma bagunça de marionetes, com objetos pulando como
pipoca em uma rede e potentes ventiladores produzindo ondas de tecido
vermelho. A obra está no Pavilhão Francês, é claro.
—
Dê uma olhada nos filmes de Jonas Mekas no Pavilhão Lituano — diz um
alemão.
Dois búlgaros aprovam com acenos
de cabeça várias instalações da seleção de artistas, em sua maioria
jovens, do Arsenale, como um candelabro feito com 14 mil absorventes
femininos pela artista portuguesa Joana Vasconcelos e os filmes de
Regina José Galindo se depilando, tendo seu hímen cirurgicamente
reconstruído e protestando contra a violência em seu país, a Guatemala,
ao mergulhar os pés em sangue e sair pela rua.
Festival de 2005 é uma resposta ao extremismo de 2004
As reações à Bienal são sempre
díspares. A opinião geral deste ano, de que o festival não apresenta
muitos riscos, é uma resposta à última edição, um fiasco que faria
praticamente qualquer coisa parecer prudente e sóbria. Pode-se chamar
esta Bienal de a primeira minimamente adulta das últimas décadas. Menos
tensa e muito mais profissional do que a edição que a antecedeu, ela dá
destaque a instalações e vídeos, mantendo distância de boa parte do
mercado em voga atualmente, em que a juventude se vê como seu próprio
fim. Os galeristas parecem ansiosos pela feira da Basiléia, na Suíça,
quando voltarão ao trabalho.
Produzida pelas espanholas María
de Corral e Rosa Martínez (as primeiras mulheres encarregadas do
festival em seus 110 anos de história), esta Bienal é menos machista,
mistura mais as culturas, é mais inteligente e atenta às questões
femininas, antididática e mais sensualmente experimental (até
contemplativa em alguns momentos, se alguém puder imaginar isso neste
ambiente). Chamá-la de calma talvez fosse muito forte, mas a exposição é
definitivamente mais sã e agradável do que no passado.
É comum hoje em dia dizer-se que
as feiras de arte comerciais, como as da Basiléia e de Miami, são as
novas bienais: grandes shoppings de gosto eclético, comandados pelos
marchands e não por curadores, independentes de tradição e sem
problemas de agenda. Algumas exposições em museus atualmente parecem
querer imitar as feiras, tentando ficar à frente de seu tempo. É um
consenso mundial que a Bienal de Veneza é o grande elefante branco dos
festivais, com seus pavilhões nacionais anacrônicos em uma era global.
Sua proposta inicial — a de apresentar as artes e um público que não as
via em suas cidades — não é mais considerada relevante numa era de
viagens a jato, internet e outros sinais de modernidade: uma relíquia
dos tempos do telégrafo e dos navios a vapor. Veneza só é badalada até
hoje porque, bem, porque é Veneza.
Aqui, os visitantes parecem
realmente falar de arte. Eles resmungam, é claro, mas resmungam em geral
sobre arte. A Bienal ainda tem como principais motivações o poder, a
política e o turismo. Ninguém deve esquecer-se de que a artista
americana Barbara Kruger escreveu as palavras “poder” e “dinheiro” em
inglês e italiano em colunas na frente do Pavilhão Italiano, o que tem
maior destaque na exposição. Algumas das conseqüências dessa tendência
são a proibição ao artista alemão Gregor Schneider de reproduzir a Kaaba
de Meca na Praça de São Marco; a presença da cafeteria Illy por toda
parte; a alta no preço dos ingressos; e que os chineses, com quem o
governo italiano está ansioso para fazer comércio, ganharam um belo
espaço — que, por sinal, visualmente é uma decepção.
Talvez as Guerrilla Girls
(“Meninas da guerrilha”, presentes em enormes tapumes na entrada do
Arsenale) notem que, além de Egito e Marrocos, não há países africanos
representados. Apesar disso, a divisão por pavilhões nacionais, com
ênfase a artistas da América Latina, tem suas vantagens: há uma mistura
de gostos e prioridades, vindos de contextos diferentes, que demandam
esforços de tradução. Talvez não esteja claro o significado do pavilhão
chinês — que conta com um vídeo que analisa o feng shui da
Bienal. No mínimo aprende-se que existem abismos culturais, que o mundo
não responde a uma mesma força ou se resume ao poderoso dólar.
Em tempos de alarmante acentuação
do nacionalismo, esta pode ser a maior contribuição cultural da Bienal.
Mais do que tentar resumir o estado da arte contemporânea — uma
tentativa vã de qualquer forma — a virtude de uma feira como esta pode
estar em sua fórmula original: a de simular uma aldeia global, um espaço
comum pacífico e genial, entre as parreiras e as ondas dos canais, onde
se pode entabular uma conversa sobre arte cujas entrelinhas sejam de
mútua compreensão.
Vídeo de suíço lembra Duchamp e Hélio Oiticica
Não falta tempo para se pensar. A
instalação de Meka é comovente: uma combinação de filmes caseiros e
outras imagens tiradas de meio século, a soma de uma vida criativa. No
Arsenale, a libanesa Mona Hatoum apresenta um círculo de areia reunida
lentamente com um ancinho, algo que fica na memória, como o filme — em
seis canais diferentes — da coreana Kim Sooja, em que uma mulher, de
costas, é ignorada no meio da multidão em países diferentes. Outro
destaque é o trio de vídeos do americano Stephen Dean, de panoramas
coloridos, igualmente delirantes e assustadores.
Passeando pelos pavilhões
chega-se à igreja de São Eustáquio, onde, em uma espécie de satélite do
Pavilhão Suíço, Pipilotti Rist projeta no teto um caleidoscópio
psicodélico, que representa o Paraíso, onde ninfas nuas mastigam frutas
maduras. O público deita-se, sem sapatos, em almofadas, 50 de cada vez.
Tiepolo, Cranach, Duchamp e Hélio Oiticica vêm à mente, todos de uma vez
— bom, pelo menos Cranach depois de um LSD. Muito zen. Muito bonito.
(©
O Globo)
Roterdã vê ‘Motezuma’, ópera perdida de Vivaldi
Alan Riding
Do New York Times ROTERDÃ, Holanda
Antonio Vivaldi voltou a Veneza,
sua cidade natal, no início de 1733, disposto a reclamar seu lugar de
compositor mais popular da república, ameaçado, na sua ausência de cinco
anos, pela ascensão de uma nova geração. Aos 55 anos, a enfrentaria com
uma ópera moderna, inspirada na conquista dos astecas por Hernán Cortés.
Como a ópera, “Motezuma”, foi
recebida na estréia, no Teatro di Sant’Angelo, em Veneza, no outono
daquele ano, não se sabe. Mas desconfia-se que não tenha mudado a sorte
de Vivaldi. Ele se mudaria para Viena em março de 1740 em busca do
apadrinhamento da dinastia dos Habsburgo. E lá, em estado de penúria, ao
que consta, morreu, em 28 de julho de 1741.
A existência de “Motezuma” é
conhecida há tempos, pois o libreto sobreviveu, chegando a inspirar o
romance de 1974 de Alejo Carpentier, “Concerto barroco”. Mas a partitura
foi encontrada, afinal, pelo musicólogo alemão Steffen Voss, e
apresentada sábado passado, talvez pela primeira vez desde 1733, no De
Doelen, em Roterdã.
O que Voss achou quando procurava
por cantatas perdidas de Häendel nos arquivos da Sing-Akademie, em
Berlim, em fevereiro de 2002, corresponde só a 70% da partitura. As
primeiras sete cenas ainda estão perdidas. Assim, o espetáculo começou
com Cortés já controlando a capital asteca, Tenóchitlan. Montezuma — o
libretista preferiu chamá-lo Motezuma por alguma razão — está
desesperado, pronto para ordenar a morte de Teutile por ter se
apaixonado por Ramiro. Mas Mitrena, a esposa forte de espírito de
Montezuma, enfrenta Cortés.
Ópera será interpretada na Itália e na Alemanha
Como era comum na “ópera séria”,
a partitura consiste de longos trechos recitados intercalados com árias.
Das 22 árias identificadas no libreto, 12 estão na trilha recuperada. O
que confere ao trabalho sua modernidade, diz Federico Sardelli, que
conduziu sua orquestra Modo Antiquo no concerto de sábado, é que três
partes recitadas são acompanhadas pela orquestra e, o que é incomum para
a época, um trio interpreta o clímax do segundo ato.
— As árias são dificílimas —
disse ele, destacando a de Mitrena, que encerra o primeiro ato, e teria
sido escrita para Anna Giró, protegida de Vivaldi.
Vivaldi escreveu dois papéis para
castrati sopranos, embora geralmente preferisse castrati
altos. Neste concerto, contudo, a única voz masculina foi a de Montezuma
(Sergio Foresti). Mulheres cantaram as partes de Cortés (Emanuela
Galli), seu general Asprano (Dominique Labelle) e Ramiro (Renata
Pokupic). A ópera não tem coro.
Sardelli deverá conduzir uma
produção completa do espetáculo, com outro elenco, no Barga Opera
Festival, na Itália, em 16 e 17 de julho, e no Altstadtherbst, em
Düsseldorf, de 22 a 25 de setembro. Também apresentará uma versão em
concerto no festival de música barroca de Ambronay, na França, em 1 de
outubro.
(©
O Globo) |
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