Roberta Oliveira
Odin é o nome de uma divindade pré-cristã escandinava. Mas também é nome
do grupo criado há mais de 40 anos pelo diretor italiano Eugenio Barba e
que, como ele mesmo diz, já faz parte dos livros de história do teatro.
Sediado na pequena cidade de Holstebro, na Dinamarca, o Odin Teatret
esteve pela última vez no Rio, em 1996, trazendo o espetáculo “Kaosmos”.
E está de volta. Desta vez para o Teatro 3 do Centro Cultural Banco do
Brasil, dentro da Mostra Internacional de Teatro, que acontece entre os
dias 16 e 26 de junho. As duas sessões, que seguem às feitas no Filo
(Festival de Teatro de Londrina), trazem os atores Roberta Carreri e Jan
Ferslev falando de amor.
De que maneira a infância na Itália ainda é uma influência? O senhor
já pensou em voltar?
EUGENIO BARBA: A infância vivida numa vila de pescadores no sul
da Itália teve uma profunda influência na minha sensibilidade e na minha
visão da vida. Ainda está viva em mim a memória daquela pobreza logo
depois da Segunda Guerra Mundial, da minha família, em que várias
gerações conviviam, e da variedade de tradições populares e religiosas —
procissões, cantos, festas e cerimônias — de que participei. Deixei a
Itália em 1954 e não tenho intenção de deixar a Dinamarca.
Se pudesse escolher, quais seriam os encontros mais importantes da
sua vida? O encontro com Grotowski foi fundamental? Como?
BARBA: Profissionalmente, Grotowski marcou radicalmente a minha
maneira de ver, pensar e fazer teatro. Encontrei o diretor na Polônia,
onde estudava teatro. Tínhamos a mesma idade, e ele ainda era
desconhecido. Dirigia um pequeno teatro do interior com seis atores. Com
ele vivi durante três anos a transformação daquele teatro, em que
montavam textos de vanguarda, em uma prática em que a arte do ator, a
interpretação do texto, a relação com o espectador mudaram radicalmente.
Sem saber, estava participando do nascimento do Teatro Pobre, que teria
incendiado a imaginação e alimentado as necessidades de toda uma geração
pós-68. Outras pessoas também foram fundamentais para mim. Emigrei da
Itália para a Noruega e por alguns anos trabalhei como operário numa
oficina. Vinha de uma família de classe média. De repente, estava
mergulhado no mundo operário, além de tudo dentro de uma cultura
escandinava, tão diferente da minha. As referências foram Eigil Winje,
dono da oficina, Fridtjov Lehne, jornalista do partido comunista
norueguês, e o pintor Willi Midelfart, que me levou ao mundo da arte.
Por que escolheu a Dinamarca para formar o Odin Teatret? Sofreu
preconceito por ser estrangeiro?
BARBA: Fundei o Odin em 1964 em Oslo, na Noruega. Dois anos
depois, em turnê pela Dinamarca, a pequena cidade Holstebro, desejosa de
começar uma política cultural, propôs de eu ir para lá. Foi assim que
nosso teatro se transferiu e virou teatro-laboratório. No início, a
população local reagiu com hostilidade à nossa atividade, recusou-a e
criticou prefeito e políticos que tinham nos convidado. Esta reação era
causada por questões estéticas. Holstebro tinha só 18 mil habitantes e
ficava numa região isolada, longe das grandes cidades e sem tradição
teatral. O Odin se apresentava com espetáculos diferentes daqueles
reconhecíveis no teatro. Além disso, os espectadores não entendiam que
os nossos atores não eram dinamarqueses, que vinham de todos os países
escandinavos. Fomos obrigados a inventar uma outra maneira de contar
teatralmente uma história, conscientes de que os atores não tinham a
mesma língua dos espectadores.
Qual foi a viagem mais importante que fez? Qual sua relação com o
Brasil e com os atores brasileiros?
BARBA: Tinha 18 anos quando deixei a Itália por puro espírito de
aventura. Sinto que minhas raízes se firmam na viagem, seja no espaço
quanto no tempo, quando me coloco mentalmente em outras épocas e
regiões. Sem dúvida existem experiências traumatizantes: a primeira
viagem de carona que fiz aos 16 anos, em 1953, através de uma Europa
ainda destruída pela Segunda Guerra Mundial, o meu trabalho por 18 meses
como marinheiro num navio mercante norueguês. Tinha 20 anos e visitei a
China e o Japão. Conheci o Brasil muito tarde, em 1986, graças a Luis
Octavio Burnier, jovem diretor talentoso e criador do Lume, de Campinas.
Foi ele quem levou o Odin pela primeira vez ao Brasil. Viajamos juntos
estudando as manifestações culturais brasileiras. Muitos dos meus amigos
no Brasil eu os conheci através dele: Aderbal Freire-Filho, no Rio;
Paulo Dourado, em Salvador; Nitis Jacon, em Londrina; e Marcelo Beré, em
Brasília. Conheci muitos atores e diretores brasileiros. Hoje, um dos
professores da Ista (International School of Theatre Anthropology) é
Augusto Omolú, de Salvador.
Às vezes, vocês levam mais de dois anos para criar um espetáculo. Por
quê? Qual o seu método?
BARBA: No início, tanto eu quanto os atores não tínhamos
experiência, portanto tivemos que nos preparar profissionalmente
enquanto ensaiávamos. Isso mudou a nossa relação com o trabalho. É
importante ter a sensação de que cada espetáculo é um novo Himalaia, uma
montanha altíssima que precisa ser escalada, e que exige o máximo dos
nossos recursos. E, para mim, isso leva tempo. É preciso levar em conta
que os atores do Odin estão comigo no mínimo há 15 anos, alguns há 30 e
outros há 40. Nos primeiros espetáculos, o nosso esforço era aprender,
superar os obstáculos técnicos. Depois, com a experiência, o esforço
consiste em fugir do que já se conhece, lutar contra a próprio
espontaneidade, ou seja, contra os próprios maneirismos e hábitos. É
preciso tempo para dominar estas duas situações contrárias: aquela de
incorporar uma técnica e depois esquecê-la. Cada processo deve ser
diferente, para evitar a repetição.
Como definiria o Teatro Antropológico para um leigo? Acha que o Odin
influenciou o teatro? Como?
BARBA: Nunca falo de teatro antropológico, mas de antropologia
teatral. É uma ciência pragmática que estuda as bases técnicas do ator a
partir de um processo comparativo. Esta atividade de investigação
comparativa acontece na Ista, que fundei em 1979 e que realiza sessões
internacionais de trabalho. O Odin existe há mais de 40 anos. Foi um dos
primeiros grupos na Europa que impôs outro processo de trabalho, uma
relação diferente com o público, que criou espetáculos que hoje se
estudam nos livros de história do teatro, que criou uma visão de
pedagogia alternativa, que demonstrou ser possível desenvolver uma
pesquisa numa pequena cidade, e que usou o teatro como moeda de troca,
ou seja, como uma maneira de relacionar um grupo de teatro com uma
comunidade. Esta atividade diversificada, esta prática de um
teatro-laboratório, atraiu muitas pessoas. Odin faz sentido para elas.
Qual é o lugar do teatro experimental hoje? Num mundo cada vez mais
rápido, em que televisão e cinema têm cada vez mais espaço?
BARBA: Não existe um único modelo de teatro hoje. É preciso falar
de um sistema ecológico de teatro que inclui desde o pequeno grupo do
interior até os grandes teatros nacionais, desde os espetáculos
comerciais até os projetos que duram apenas um dia, das performances ao
teatro político. Esta variedade mostra que o nosso ofício é capaz de
encontrar soluções adequadas em vários contextos, apesar do
desenvolvimento de outras formas tecnológicas de representação. A
televisão e o cinema não apagaram o teatro. Pelo contrário, todas as
estatísticas mostram um aumento do número de espectadores. A prova da
presença e da vitalidade do teatro na sociedade contemporânea é dada
pela contínua procura de jovens que vêem o teatro como prática pessoal
de liberdade de expressão e de ação social. É só pensar em quanto teatro
vem sendo feito nos bairros pobres, nas cadeias, nas escolas, para não
falar do teatro africano inspirado por um artista brasileiro: Augusto
Boal.
Hoje, vocês têm 20 espetáculos em repertório. Por que escolheram
“Salt” para vir ao Brasil?
BARBA: É importante para mim mostrar cada espetáculo novo nos
países em que o Odin já esteve. “Salt” é um dos mais novos trabalhos do
grupo, no qual Roberta Carrieri e Jan Ferslev trabalharam por mais de
cinco anos. Precisava ser visto pelos brasileiro que têm acompanhado o
trabalho do Odin.
O Odin veio outras vezes ao Rio. Quem viu as peças anteriores vai
sentir alguma diferença no Odin?
BARBA: Como dizia antes, a cada começo do ensaio, temos
necessidade de encontrar pontos de partida e condições concretas para
não recair nos nossos clichês e maneirismos. Portanto, também em “Salt”
o nosso método de trabalho foi diferente dos outros. Cabe ao espectador
perceber estas diferenças.
É um espetáculo para poucas pessoas. Qual é o número ideal de
espectadores? Como decidem isso?
BARBA: Foi cientificamente provado que a nove ou dez metros de
distância o impacto da presença do ator sobre o espectador diminui. A
uma distância acima desta o espectador percebe tudo, mas o seu sistema
nervoso não reage aos impulsos físicos do comportamento do ator. Por
isso, procuro criar peças onde atores e espectadores interagem de forma
próxima. Com isso, só posso ter um número limitados de espectadores,
que, segundo a disposição no espaço, pode chegar até 150.
Quantitativamente, é uma desvantagem para o teatro, quando se compara,
por exemplo, com o cinema. Por outro lado, a presença dinâmica e a
relação viva entre ator e espectador constitui a identidade e a força do
teatro. Num mundo cada vez mais tecnológico e virtual, a saudade da
relação humana garante que o teatro não vai acabar.
(© O
Globo)
Mostra de teatro estréia com pé direito
Em sua primeira edição, em parceria com o Festival Internacional de
Teatro de Londrina (Filo), a Mostra Internacional de Teatro leva aos
teatros 2 e 3 do Centro Cultural Banco do Brasil, entre os dias 16 e 26
de junho, quatro atrações. A principal delas é “Salt”, do diretor
Eugenio Barba. É um espetáculo livremente inspirado no romance “Está
ficando tarde demais”, do também italiano Antonio Tabucchi, em que
Roberta Carreri empreende uma viagem pelo Mediterrâneo em busca do
amado.
Entretanto, quem abre o MIT é a dançarina e coreógrafa japonesa
naturalizada americana Maureen Fleming. Ela traz ao Brasil o solo “After
Eros”. Com trilha sonora de Philip Glass, interpretada ao vivo pelo
pianista Peter Phillips, e texto de David Henry Hwang, a coreografia
conta o mito de Eros e Psique.
Atores russos criam instalações de corpos vivos
O evento internacional segue, entre os dias 21 e 23, com “White cabin”,
espetáculo multimídia do russo Akhe Group. O ambicioso objetivo da
companhia é levar ao palco o que acontece na mente e na alma dos
espectadores. Para isso, eles se valem de pinturas, fotografias e
vídeos. Por meio destas manifestações artísticas, eles criam instalações
de corpos vivos que tocam em assuntos que já suscitaram polêmica, como a
morte, não só física como a de um país, a da cultura ou a da alma.
Antes das duas sessões da grande atração, “Salt”, os espectadores
poderão assistir a “Gemelos”. Baseada no romance “O grande caderno”, da
escritora húngara Agota Kristof, a peça conta a história de duas
crianças que vivem durante a Segunda Guerra Mundial. Laura Pizarro e
Juan Carlos Zagal, dois dos três atores em cena — o outro é Diego
Fontecilla — faziam parte do grupo chileno La Troppa, que os brasileiros
conhecem por peças como “Pinocchio” e “Viagem ao centro da Terra”. Desta
vez, eles dão vida a personagens que parecem brinquedos gigantes,
enquanto o cenário e os figurinos dão ao espetáculo um visual de
história em quadrinhos.
(© O
Globo)