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Versão de "Ludwig", de Visconti, tem quatro horas


 

Luchino Visconti, Romy Schneider e Helmut Berger durante as filmagens de "Ludwig"

 

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

   Pouco antes de morrer, Luchino Visconti decidiu rever todos os seus filmes na companhia da velha comparsa e roteirista Suso Cecchi DAmico. Todos menos um, "Ludwig". O diretor ainda havia se recuperado da decepção de ter visto, enfermo, o seu filme ser lançado, a contragosto, pela empresa produtora, retalhado quase pela metade, inteiramente mudado.

   Depois da morte do cineasta, treze de seus mais fiéis colaboradores decidiram comprar os direitos do filme e recuperar sua versão integral, seguindo as pistas deixadas por Visconti. É essa versão, magnífica, de quatro horas de duração, que a Versátil está lançando em DVD duplo, recheado de extras. Versão que recupera a grande maestria de Visconti: o andamento de seus filmes, seu tempo interno.

   Só agora podemos passar a considerar "Ludwig" (1973) a grande obra da "trilogia alemã" de Visconti (iniciada por "Os Deuses Malditos" e "Morte em Veneza"). Trilogia que também pode ser vista como uma longa preparação para a obra-prima que Visconti não conseguiu filmar, sua versão de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, adaptação que resultaria não em um, mas em dois filmes, como revela Suso Cecchi nos extras.]

   Foi pesquisando, na Alemanha, as locações para "Os Deuses Malditos" que Visconti redescobriu, num daqueles excêntricos castelos idealizados pelo rei da Baviera, o fascínio de Ludwig 2º. Tendo começado às voltas com o período nazista, visto em muitos aspectos como uma degenerescência do romantismo alemão, sua trilogia encontraria o seu desfecho, em marcha a ré, na verdadeira encarnação do espírito romântico, o Rei-Lua.

   Aquele que foi, segundo Paul Verlaine, o único verdadeiro rei de seu século por não se ter adaptado, em sua inquietação espiritual, ao materialismo da burguesia ascendente, precisou falhar tanto como governante quanto como homem para eternizar o seu enigma, sua aura de visionário. Um homem que esteve sempre dividido entre a ascese do catolicismo e a embriaguez da música de Wagner, seu grande protegido. Uma espécie de narciso crucificado que viveu, como lembra Laurence Schifano (autor de uma bela biografia intelectual de Visconti), entre o sonho de uma pureza impossível e a realidade dos prazeres.

   Tudo se passa, em "Ludwig", como se o protagonista tomasse a contrapelo o conselho que ouve de um padre, na primeira cena, às vésperas da coroação: "O verdadeiro homem grande é pequeno dentro de si".

   O fracasso de Ludwig como rei, sua maldição, na visão de Visconti, foi não conseguir ser "pequeno dentro de si". Para desvendar seu enigma, o cineasta se concentra nos interiores, no Ludwig da alcova, isto é, da ficção, tomando a grande história sempre de viés, proustianamente.
Dos grandes acontecimentos históricos só tomamos nota através dos personagens palacianos, em depoimentos colhidos diretamente para a câmera, na versão viscontina do inquérito que tirou Ludwig do poder por insanidade mental.

   Visconti usa o inquérito como coluna vertebral da narrativa para se deter, mais livremente, nas cenas que investigam o caráter do rei. Não sua sanidade, mas os sintomas da perturbação nascidos da confrontação entre o seu espírito e a realidade dos acontecimentos externos.

   O que interessa a Visconti é, antes de tudo, a forma como a grande história ecoa no interior de suas personagens. Quanto mais Ludwig fracassa na sua vida protocolar, mais se aliena em seus sonhos de grandeza estética, em suas ficções operísticas de cenários lúgubres, uterinos. O autor vai ao encalço da personagem, imergindo num clima cada vez mais narcotizante e notívago, cada vez mais wagneriano.

   Atrás do espírito do Rei-Lua, Visconti embrenha-se pela noite, adentrando o terreno do romantismo, onde a sensibilidade reina sobre a razão. Autor e personagem deparam-se frente a frente na seqüência em que, já totalmente alienado, Ludwig seduz e subjuga um jovem ator, reproduzindo o mesmo tipo de relação que Visconti nutria com seu ator principal, Helmut Berger.

   É o final de um périplo iniciado nos passeios noturnos de Ludwig com sua prima e musa, a inquieta imperatriz Elisabeth (Romy Schneider, revivendo a personagem que a lançou para as telas, Sissi) e nos encontros com Wagner (Trevor Howard). A relação entre o compositor e o rei, seu mecenas, é a essência do filme.

   Visconti se baseou na correspondência dos dois e no livro de Thomas Mann, "Sofrimentos e Grandeza de Richard Wagner", para compor um retrato demasiado humano do artista como já fizera com Mahler em "Morte em Veneza".

   De temperamento mesquinho, aproveitador, o compositor revela grande talento para sobreviver à custa da ingenuidade e do romantismo do rei. De certa forma, o universo wagneriano é o que aprisiona e vitima Ludwig. Ou, como sugere o musicólogo João Marcos Coelho numa das entrevistas dos extras, deixar-se assassinar pelo sonho de Wagner foi a forma que Ludwig encontrou de entrar para a história.

Ludwig
Direção:
Luchino Visconti
Distribuidora: Versátil; R$ 60, em média

(© Folha de S. Paulo)

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