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Leonardo da Vinci, neurocientista


 

 
 

Há cinco séculos, o artista-engenheiro passou à frente de seus contemporâneos ao desenvolver um estudo mais científico do cérebro

por Jonathan Pevsner

   Arquétipo do homem da Renascença, Leonardo da Vinci é admirado pela variedade inigualável de paixões intelectuais que nutria. O criador de Mona Lisa e de outras obras-primas da segunda metade do século XV e início do XVI foi também músico talentoso, cientista e engenheiro. Suas invenções incluíram rolamentos, instrumentos para medir a gravidade específica de objetos sólidos e fantásticas máquinas de combate (embora abominasse a guerra, a "mais bestial insanidade"). Muito menos conhecidas - em boa parte porque centenas de páginas de anotações e desenhos detalhados de anatomia ficaram sem publicação até o começo do século XX - são suas descobertas notáveis e perspicazes na área da neurociência. Numa época em que era mais fácil aceitar as noções vindas da ciência medieval e da Grécia e Roma antigas, Da Vinci foi pioneiro na prática de realizar desenhos de anatomia com base em suas próprias observações.

   Ele também buscou determinar a base física através da qual o cérebro interpreta os estímulos sensoriais e por meio da qual a mente funciona.

   E desenvolveu uma teoria coerente de como operam os sentidos, em particular o da visão - explicações mecanicistas de tais fenômenos que refletem o pensamento típico de sua carreira principal, a engenharia.

   Da Vinci nunca foi para a universidade e só começou a estudar latim depois dos 40 anos. "Meus trabalhos são uma questão de experiência pura e simples, que é a única amante verdadeira", escreveu. Como estudante perspicaz da Natureza, ele sobressaiu em relação à maioria dos anatomistas de sua época, que tendiam a repetir o dogma das autoridades gregas e romanas - da escola de Hipócrates aos ensinamentos de Galeno. Apesar disso, Da Vinci não ficou totalmente imune à confiança no passado, tão comum naquele momento. As opiniões comuns dos dias em que viveu também moldaram - e algumas vezes confundiram - seus esforços para compreender a estrutura e as funções do cérebro.

FUNDAMENTO DA VIDA

   Da Vinci nasceu em 15 de abril de 1452, nas proximidades de Vinci, a 30 km de Florença. Quando adolescente, entrou no ateliê florentino de Andrea del Verrocchio e, aos 20 anos, foi admitido na Companhia de Pintores. Os artistas da Florença renascentista eram estimulados a executar, ou ao menos observar, dissecações. Pinturas de Da Vinci como São Jerônimo, feita em torno de 1480, indicam que ele conhecia a musculatura humana. Mas poucas evidências sugerem a execução de autópsias ou o interesse mais profundo sobre anatomia até o final dos anos 1480, quando se mudou para Milão. Lá, sua curiosidade implacável o levaria a uma série de descobertas incríveis nos campos de neuroanatomia e neuropsicologia.

   Os mais antigos desenhos de anatomia feitos por Da Vinci que restaram estão relacionados ao sistema nervoso e datam de 1487, quando ele dissecou um sapo (seccionou a medula).

   Ele pode ter sido a primeira pessoa a fazer esse experimento. "O sapo morre instantaneamente quando a medula espinhal (medulla oblongata) é perfurada. Antes disso, é capaz de viver sem cabeça, sem coração ou qualquer um dos órgãos interiores, intestinos ou pele. Aqui, portanto, parece estar o fundamento do movimento e da vida." Da Vinci amava os animais: costumava comprar pássaros no mercado para libertá-los, era vegetariano e ávido entusiasta de cavalos. Talvez por essa razão não tenha sido registrada nenhuma vivissecção nas outras centenas de experiências que realizou.

   Na mesma folha em que desenhou o sapo, reproduziu a medula espinhal e acrescentou as palavras "poder generativo", que refletem a crença, originada quase 2 mil anos antes com o famoso médico grego Hipócrates, de que o espermatozóide provinha da medula. Perto da medula, desenhou um tubo, e na legenda escreveu que o sentido do toque era a causa do movimento e a "passagem para poderes animais" (transito della virtu animalia).

DO ESPÍRITO ANIMAL À SINAPSE

   Da Vinci pode ter sido exposto às idéias sobre espíritos animais por meio dos escritos de Galeno de Pérgamo (por volta de 130 a 200 d.C.), o maior médico da era romana antiga.

   Após a morte de Galeno, o progresso da anatomia permaneceu estacionado durante oito séculos, até a ascensão do Islã. Galeno descreveu um conceito inicialmente desenvolvido por Erasístrato de Ceos, médico do famoso centro de Alexandria que floresceu por volta de 300 a.C. Erasístrato acreditava que o ar respirado era convertido em "espírito vital". Levado aos ventrículos do cérebro, tornava-se "espírito animal". Esse espírito animal preenchia os nervos ocos e permitia que controlassem o movimento dos músculos. Hoje sabemos que células nervosas não são ocas e que propagam um sinal elétrico para o terminal nervoso, onde neurotransmissores químicos são liberados pela sinapse, um pequeno intervalo  entre o neurônio e a célula muscular. Esses transmissores químicos induzem uma célula muscular a se contrair.

   Ao observar os primeiros esboços de Da Vinci sobre o cérebro, encontramos uma página notável datada de 1487, em que aparece uma cebola cortada ao meio e vários desenhos da cabeça humana com visões esquemáticas do olho. Ao lado das imagens, escreveu: "Cortar uma cebola pela metade possibilita ver e enumerar todas as camadas ou peles que envolvem circularmente seu centro. Do mesmo modo, ao se cortar a cabeça de um homem ao meio, primeiramente se cortam os cabelos, então o couro cabeludo, depois o tecido muscular e o pericrânio, e em seguida o crânio; e dentro a dura-máter, a pia-máter e o cérebro; e novamente a pia-máter e a dura-máter e a rete mirabile e finalmente o osso, o fundamento deles". Esse texto veio de Ibn Sinã (também chamado Avicena, que viveu de 980 a 1037 d.C.), médico e filósofo persa que obteve proeminência comparável à de Galeno, em grande parte decorrente do enciclopédico Qanun fi-al-tibb (Cânon de medicina). Uma das principais fontes de Da Vinci era o Qanun.

   A descrição que Da Vinci faz do crânio inclui os sinos frontais, mostrados como uma protrusão logo acima do olho, uma de suas descobertas originais. O nervo óptico projeta-se a partir do olho para o centro do cérebro, encontrando o primeiro de uma série de três ventrículos ovais - que são bem diferentes da aparência real dessas cavidades preenchidas com fluido cérebro-espinhal. Os ventrículos de Da Vinci aparecem vistos também de cima, com os nervos ópticos e auditivos entrando no ventrículo anterior.

   Mas o que o teria inspirado a desenhar os ventrículos do cérebro desse modo? Galeno havia localizado as funções cerebrais, incluindo as saídas sensorial e motora, em regiões cerebrais próximas aos ventrículos. Seus intérpretes subseqüentemente introduziram a doutrina de três "células" ventriculares, atribuindo-lhes várias funções cerebrais. Acreditava-se que uma primeira célula serviria como o lugar de encontro comum para todos os sentidos, e portanto era chamada de sensus communis em latim. (Nossa expressão "senso comum" vem daí.) A maioria dos autores colocava também a fantasia e a imaginação nesse sensus communis.

CONTRA OS DOGMAS VIGENTES

   O ventrículo do meio abrigava a cogitava, ratio ou estimativa - o que chamamos de pensamento racional. O Qanun de Ibn Sinã explicava que o sensus communis no ventrículo anterior recebe informações sensoriais, a imaginação abriga as percepções dos sentidos depois que elas diminuem, e a faculdade cogitativa no ventrículo mediano pode manipular imagens guardadas na imaginação - criando a idéia de um homem voador ou uma montanha de esmeraldas, por exemplo. A maioria dos autores concordava que o ventrículo posterior era o lugar da memória.

   Em várias dezenas de manuscritos medievais e renascentistas, encontramos diagramas nos quais o sensus communis é localizado no ventrículo anterior. Mas ele modificou suas opiniões em contraste dramático com o dogma prevalecente, transferindo o sensus communis para o ventrículo mediano e agora chamando o ventrículo anterior de imprensiva.

   A palavra imprensiva é de difícil tradução e nenhum anatomista antes ou depois dele usou esse termo. Refere-se a um lugar para o processamento de impressões sensoriais, em particular o da visão. No entanto, Da Vinci continuou a mostrar o nervo óptico terminando no ventrículo anterior. Os nervos olfativos e auditivos entravam no ventrículo mediano, denominado senso comune ou algumas vezes de comocio (pensamento) ou volonto (vontade).

   A nomenclatura única de Da Vinci dos ventrículos reflete a grande importância conferida por ele ao sentido da visão, descrita como a janela para a alma e a mais importante base para toda experiência. Para ele, o papel do artista era descrever a Natureza - "a mente do pintor precisa necessariamente entrar na mente da Natureza a fim de agir como intérprete entre Natureza e arte" - e esse papel envolvia em primeiro lugar a visão. Diferentemente de qualquer outro artista ou anatomista, Da Vinci considerava a percepção artística como uma moldura anatômica da visão. É extraordinário que colocasse ênfase no sistema visual acima dos outros sentidos ao agir por meio da imprensiva. Ele acreditava que, uma vez que a informação passava pelo senso comune, ela era julgada, e ele percebia essa função como um olho interno ou occhio tenebroso ("o olho nas sombras" - ou seja, o olho sem luz externa).

ONDE A ALMA RESIDE

   Entre 1487 e 1493 Da Vinci prosseguiu criando diversos desenhos maravilhosos do crânio. Essas belas e vívidas imagens estão entre seus mais inspirados desenhos de anatomia. Em um deles, um crânio dividido ao meio permite uma observação em múltiplas profundidades. No lado esquerdo está o antro maxilar, cavidade da área facial, identificada pela primeira vez por ele. O texto que acompanha a imagem diz respeito ao lugar do senso comune em relação à face, assim como à discussão sobre o número de dentes. (Da Vinci corrigiu Aristóteles, que sugeriu que os homens tivessem mais dentes que as mulheres.)

   Outra proeza de anatomia fornece a primeira descrição precisa das artérias meníngeas. Da Vinci considerava significativo o suprimento de sangue para o cérebro, como a fonte de "espírito vital" para os ventrículos. Esse diagrama mostra também os nervos cranianos indo para o centro geométrico do cérebro, onde ele posicionava o senso comune. Os nervos, na realidade, não convergem dessa maneira; portanto, seu arranjo seguiu o que ele pensava que deveria ser, em vez do que ele na verdade observara.

   Para Da Vinci, o julgamento da informação pela alma ocorria também no senso comune. "A alma parece residir no julgamento e o julgamento parece estar localizado naquela parte onde todos os sentidos se encontram, e ela é chamada de senso comune", escreveu por volta de 1489. "Todo o nosso conhecimento tem sua origem em nossas percepções (dos sentidos)", concluiu. Objetos visuais, cheiros e sons convergem para o senso comune, enquanto "cordas perfuradas" transmitem informações sensoriais a partir da pele.

FUNDAMENTO DA VIDA

   Uma metáfora militar foi o modo como tentou explicar que o desenvolvimento motor é controlado também pelo senso comune e pela alma. Como afirmou, "os nervos com os seus músculos obedecem aos tendões como os soldados obedecem aos oficiais, e os tendões obedecem ao senso comune como os oficiais obedecem ao general. Portanto, a articulação dos ossos obedece ao nervo, e o nervo ao músculo, e o músculo ao tendão, e o tendão ao senso comune. E o senso comune é o lugar da alma, e a memória é sua munição, e a imprensiva é seu padrão de referência, porque o sentido conta com a alma e não a alma com o sentido. E onde o sentido que serve a alma não está a serviço da alma, todas as funções daquele sentido também são deficientes na vida daquele homem, como é visto naqueles nascidos mudos e cegos". Seu interesse pela alma geralmente desembocava em questões como essa sobre doença. Ele escreveu: "Como os nervos às vezes operam por eles próprios sem nenhum comando de outras partes atuantes da alma. Isso é claramente aparente, pois você vê paralíticos e aqueles que estão tiritando de frio moverem partes do corpo que tremem, como cabeça ou mãos, sem a permissão da alma; e a alma com todas as suas forças não pode evitar o tremor dessas partes. A mesma coisa ocorre com a epilepsia e com várias partes tais como o rabo dos lagartos".

   Como suas teorias sobre a mente eram baseadas nas leis da física, ele às vezes era levado a direções inesperadas. Argumentava longamente, por exemplo, que fantasmas não podiam existir. "Não pode haver voz onde não há movimento ou percussão do ar; não pode haver percussão do ar onde não há instrumento; não pode haver instrumento sem um corpo; e, sendo assim, um espírito não pode ter nem voz nem forma nem força."

   Depois de 1493, Da Vinci abandonou as pesquisas de anatomia durante 15 anos. Permaneceu em Milão ao longo dos anos 1490, trabalhando na corte de Ludovico Sforza, participando de projetos artísticos como A última ceia, trabalhando em engenharia civil e militar, e escrevendo seu tratado sobre mecânica chamado Elementos das máquinas. Em 1505, prosseguiu com seus estudos sobre o vôo dos pássaros e a viabilidade de aeroplanos movidos por homens e planadores.

   O foco que mantinha na matemática foi acentuado à medida que tentava aplicar a ciência da perspectiva às suas pinturas. Seus esforços foram moldados por um desejo obsessivo de entender o que chamou de quatro poderes da Natureza: movimento, peso, força e percussão.

   A crença de Leonardo da Vinci no corpo como tema de estudos de mecânica para essas quatro forças o levou a inovações impressionantes quando ele voltou ao tópico anatomia. Consideremos seus estudos sobre o coração. Ele foi o primeiro a perceber que o órgão tem quatro câmaras, e não duas, e descobriu os átrios (chamados por ele de os dois "ventrículos superiores"). Da Vinci supôs corretamente que os átrios se contraíam para impulsionar o sangue. Durante uma autópsia, chegou a identificar um defeito do septo atrial, buraco no septo que separa os dois átrios. Fez um molde de vidro tridimensional da aorta para estudar sua função e investigou detalhadamente (até mesmo com modelos de vidro) as válvulas tricúspide, pulmonar, mitral e aórtica. Ele descobriu também a banda moderadora, movimento muscular no ventrículo direito.

   E, então, quando Da Vinci retomou suas explorações da estrutura e função do cérebro, em 1508, sua abordagem foi construída sobre uma base mais confiável do que ocorrera com seus estudos iniciais. Ele inventou uma técnica brilhante: depois de perfurar um buraco na base do cérebro de um boi morto, usou uma seringa para injetar cera quente nos ventrículos. Quando a cera se fixava, ele cortava fora o tecido cerebral e conseguia fazer um molde razoavelmente preciso dos ventrículos. Esse é o primeiro uso conhecido de um meio solidificante para medir o tamanho e a forma de uma estrutura interna do corpo, e dá um exemplo de como Leonardo usou suas habilidades de artista - nesse caso, de escultor - para desenvolver uma nova abordagem científica.

   Da Vinci conseguiu desenhar de forma impressionante uma cabeça humana, desta vez retratando os ventrículos de maneira mais realista baseado no que havia observado no boi .

   Igualmente astuto foi o posicionamento dos nervos cranianos. Podemos identificar sete pares, incluindo os nervos olfativos, os quais nunca haviam sido descritos como nervos cranianos, e os nervos ópticos. Ele foi o primeiro a diagramar com realismo como os nervos se cruzam no quiasma óptico. Todos esses nervos cranianos não mais entravam nos ventrículos, como ocorria nas ilustrações tradicionais, mas em vez disso atravessavam o tecido cerebral que circundava o quiasma. Progrediu como anatomista a ponto de desenhar o que havia visto, mesmo quando isso contradizia o enorme peso da tradição.

A ANTECIPAÇÃO DO GÊNIO

   Da Vinci executou seus experimentos sobre o cérebro dentro de um contexto mais amplo de seus estudos sobre a natureza dos estímulos sensoriais e sobre a função do olho. Manteve uma teoria bastante tradicional de como o olho detecta as imagens das coisas que vemos. A luz, acreditava, é uma "força" que leva raios visuais de um objeto até o olho na forma de "pirâmides" que encontram os olhos no topo da pirâmide.

   Ondas de "percussão" atravessariam pupila e lentes para o nervo óptico na imprensiva e então para o senso comune, onde entrariam conscientemente. Tendo lido a literatura sobre óptica e então fazendo suas próprias experiências, Da Vinci forçou a conclusão de que vemos objetos porque o olho recebe luz. Essa opinião opunha-se às de Platão, Euclides, Galeno e outros, que sustentavam que a força visual emanava do olho, embora tenha sido apoiado por alguns, incluindo o grande médico e filósofo árabe Alhazen.

   Apesar de desafios como esse,  Leonardo da Vinci deu passos enormes durante sua vida. Se pudesse viajar no tempo para visitar nossa sociedade, certamente ficaria encantado com o progresso na compreensão das funções físicas do cérebro por meio da observação e da experimentação. Ao mesmo tempo, poderia se surpreender ao saber quantas perguntas colocadas por ele permanecem sem resposta completa pela neurociência moderna: Como lemos ou lembramos? Por que algumas pessoas têm retardo mental ou epilepsia? Por que sonhamos ou até mesmo dormimos? O que é a alma? Graças em parte aos fundamentos estabelecidos por Da Vinci e outros, talvez possamos respondê-las dentro dos próximos cinco séculos.

 

O Autor
Jonathan Pevsner é professor associado do Departamento de Neurologia do Instituto Kennedy Krieger da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins. No laboratório, estuda transtornos cerebrais da infância e os causados por envenenamento por chumbo.

Tradução de Frances Jones

 
Para conhecer mais
Leonardo da Vinci´s elements of science of man. Kenneth Keele. Academic Press, 1983.

http://pevsnerlab.kennedykrieger.org/leonardo.htm

(© VIVER Mente & Cérebro)

Para saber mais sobre este assunto (arquivo ItaliaOggi):

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