Arquétipo do homem da Renascença, Leonardo da Vinci é admirado pela
variedade inigualável de paixões intelectuais que nutria. O criador de
Mona Lisa e de outras obras-primas da segunda metade do século XV e
início do XVI foi também músico talentoso, cientista e engenheiro. Suas
invenções incluíram rolamentos, instrumentos para medir a gravidade
específica de objetos sólidos e fantásticas máquinas de combate (embora
abominasse a guerra, a "mais bestial insanidade"). Muito menos
conhecidas - em boa parte porque centenas de páginas de anotações e
desenhos detalhados de anatomia ficaram sem publicação até o começo do
século XX - são suas descobertas notáveis e perspicazes na área da
neurociência. Numa época em que era mais fácil aceitar as noções vindas
da ciência medieval e da Grécia e Roma antigas, Da Vinci foi pioneiro na
prática de realizar desenhos de anatomia com base em suas próprias
observações.
Ele também buscou determinar a base física através da qual o cérebro
interpreta os estímulos sensoriais e por meio da qual a mente funciona.
E desenvolveu uma teoria coerente
de como operam os sentidos, em particular o da visão - explicações
mecanicistas de tais fenômenos que refletem o pensamento típico de sua
carreira principal, a engenharia.
Da Vinci nunca foi para a
universidade e só começou a estudar latim depois dos 40 anos. "Meus
trabalhos são uma questão de experiência pura e simples, que é a única
amante verdadeira", escreveu. Como estudante perspicaz da Natureza, ele
sobressaiu em relação à maioria dos anatomistas de sua época, que
tendiam a repetir o dogma das autoridades gregas e romanas - da escola
de Hipócrates aos ensinamentos de Galeno. Apesar disso, Da Vinci não
ficou totalmente imune à confiança no passado, tão comum naquele
momento. As opiniões comuns dos dias em que viveu também moldaram - e
algumas vezes confundiram - seus esforços para compreender a estrutura e
as funções do cérebro.
FUNDAMENTO DA VIDA
Da
Vinci nasceu em 15 de abril de 1452, nas proximidades de Vinci, a 30 km
de Florença. Quando adolescente, entrou no ateliê florentino de Andrea
del Verrocchio e, aos 20 anos, foi admitido na Companhia de Pintores. Os
artistas da Florença renascentista eram estimulados a executar, ou ao
menos observar, dissecações. Pinturas de Da Vinci como São Jerônimo,
feita em torno de 1480, indicam que ele conhecia a musculatura humana.
Mas poucas evidências sugerem a execução de autópsias ou o interesse
mais profundo sobre anatomia até o final dos anos 1480, quando se mudou
para Milão. Lá, sua curiosidade implacável o levaria a uma série de
descobertas incríveis nos campos de neuroanatomia e neuropsicologia.
Os mais antigos desenhos de
anatomia feitos por Da Vinci que restaram estão relacionados ao sistema
nervoso e datam de 1487, quando ele dissecou um sapo (seccionou a
medula).
Ele pode ter sido a primeira
pessoa a fazer esse experimento. "O sapo morre instantaneamente quando a
medula espinhal (medulla oblongata) é perfurada. Antes disso, é capaz de
viver sem cabeça, sem coração ou qualquer um dos órgãos interiores,
intestinos ou pele. Aqui, portanto, parece estar o fundamento do
movimento e da vida." Da Vinci amava os animais: costumava comprar
pássaros no mercado para libertá-los, era vegetariano e ávido entusiasta
de cavalos. Talvez por essa razão não tenha sido registrada nenhuma
vivissecção nas outras centenas de experiências que realizou.
Na mesma folha em que desenhou o
sapo, reproduziu a medula espinhal e acrescentou as palavras "poder
generativo", que refletem a crença, originada quase 2 mil anos antes com
o famoso médico grego Hipócrates, de que o espermatozóide provinha da
medula. Perto da medula, desenhou um tubo, e na legenda escreveu que o
sentido do toque era a causa do movimento e a "passagem para poderes
animais" (transito della virtu animalia).
DO ESPÍRITO ANIMAL À SINAPSE
Da
Vinci pode ter sido exposto às idéias sobre espíritos animais por meio
dos escritos de Galeno de Pérgamo (por volta de 130 a 200 d.C.), o maior
médico da era romana antiga.
Após a morte de Galeno, o
progresso da anatomia permaneceu estacionado durante oito séculos, até a
ascensão do Islã. Galeno descreveu um conceito inicialmente desenvolvido
por Erasístrato de Ceos, médico do famoso centro de Alexandria que
floresceu por volta de 300 a.C. Erasístrato acreditava que o ar
respirado era convertido em "espírito vital". Levado aos ventrículos do
cérebro, tornava-se "espírito animal". Esse espírito animal preenchia os
nervos ocos e permitia que controlassem o movimento dos músculos. Hoje
sabemos que células nervosas não são ocas e que propagam um sinal
elétrico para o terminal nervoso, onde neurotransmissores químicos são
liberados pela sinapse, um pequeno intervalo entre o neurônio e a
célula muscular. Esses transmissores químicos induzem uma célula
muscular a se contrair.
Ao observar os primeiros esboços
de Da Vinci sobre o cérebro, encontramos uma página notável datada de
1487, em que aparece uma cebola cortada ao meio e vários desenhos da
cabeça humana com visões esquemáticas do olho. Ao lado das imagens,
escreveu: "Cortar uma cebola pela metade possibilita ver e enumerar
todas as camadas ou peles que envolvem circularmente seu centro. Do
mesmo modo, ao se cortar a cabeça de um homem ao meio, primeiramente se
cortam os cabelos, então o couro cabeludo, depois o tecido muscular e o
pericrânio, e em seguida o crânio; e dentro a dura-máter, a pia-máter e
o cérebro; e novamente a pia-máter e a dura-máter e a rete mirabile e
finalmente o osso, o fundamento deles". Esse texto veio de Ibn Sinã
(também chamado Avicena, que viveu de 980 a 1037 d.C.), médico e
filósofo persa que obteve proeminência comparável à de Galeno, em grande
parte decorrente do enciclopédico Qanun fi-al-tibb (Cânon de medicina).
Uma das principais fontes de Da Vinci era o Qanun.
A descrição que Da Vinci faz do
crânio inclui os sinos frontais, mostrados como uma protrusão logo acima
do olho, uma de suas descobertas originais. O nervo óptico projeta-se a
partir do olho para o centro do cérebro, encontrando o primeiro de uma
série de três ventrículos ovais - que são bem diferentes da aparência
real dessas cavidades preenchidas com fluido cérebro-espinhal. Os
ventrículos de Da Vinci aparecem vistos também de cima, com os nervos
ópticos e auditivos entrando no ventrículo anterior.
Mas o que o teria inspirado a
desenhar os ventrículos do cérebro desse modo? Galeno havia localizado
as funções cerebrais, incluindo as saídas sensorial e motora, em regiões
cerebrais próximas aos ventrículos. Seus intérpretes subseqüentemente
introduziram a doutrina de três "células" ventriculares, atribuindo-lhes
várias funções cerebrais. Acreditava-se que uma primeira célula serviria
como o lugar de encontro comum para todos os sentidos, e portanto era
chamada de sensus communis em latim. (Nossa expressão "senso comum" vem
daí.) A maioria dos autores colocava também a fantasia e a imaginação
nesse sensus communis.
CONTRA OS DOGMAS VIGENTES
O
ventrículo do meio abrigava a cogitava, ratio ou estimativa - o que
chamamos de pensamento racional. O Qanun de Ibn Sinã explicava que o
sensus communis no ventrículo anterior recebe informações sensoriais, a
imaginação abriga as percepções dos sentidos depois que elas diminuem, e
a faculdade cogitativa no ventrículo mediano pode manipular imagens
guardadas na imaginação - criando a idéia de um homem voador ou uma
montanha de esmeraldas, por exemplo. A maioria dos autores concordava
que o ventrículo posterior era o lugar da memória.
Em várias dezenas de manuscritos
medievais e renascentistas, encontramos diagramas nos quais o sensus
communis é localizado no ventrículo anterior. Mas ele modificou suas
opiniões em contraste dramático com o dogma prevalecente, transferindo o
sensus communis para o ventrículo mediano e agora chamando o ventrículo
anterior de imprensiva.
A palavra imprensiva é de difícil
tradução e nenhum anatomista antes ou depois dele usou esse termo.
Refere-se a um lugar para o processamento de impressões sensoriais, em
particular o da visão. No entanto, Da Vinci continuou a mostrar o nervo
óptico terminando no ventrículo anterior. Os nervos olfativos e
auditivos entravam no ventrículo mediano, denominado senso comune ou
algumas vezes de comocio (pensamento) ou volonto (vontade).
A nomenclatura única de Da Vinci
dos ventrículos reflete a grande importância conferida por ele ao
sentido da visão, descrita como a janela para a alma e a mais importante
base para toda experiência. Para ele, o papel do artista era descrever a
Natureza - "a mente do pintor precisa necessariamente entrar na mente da
Natureza a fim de agir como intérprete entre Natureza e arte" - e esse
papel envolvia em primeiro lugar a visão. Diferentemente de qualquer
outro artista ou anatomista, Da Vinci considerava a percepção artística
como uma moldura anatômica da visão. É extraordinário que colocasse
ênfase no sistema visual acima dos outros sentidos ao agir por meio da
imprensiva. Ele acreditava que, uma vez que a informação passava pelo
senso comune, ela era julgada, e ele percebia essa função como um olho
interno ou occhio tenebroso ("o olho nas sombras" - ou seja, o olho sem
luz externa).
ONDE A ALMA RESIDE
Entre 1487 e 1493 Da Vinci prosseguiu criando diversos desenhos
maravilhosos do crânio. Essas belas e vívidas imagens estão entre seus
mais inspirados desenhos de anatomia. Em um deles, um crânio dividido ao
meio permite uma observação em múltiplas profundidades. No lado esquerdo
está o antro maxilar, cavidade da área facial, identificada pela
primeira vez por ele. O texto que acompanha a imagem diz respeito ao
lugar do senso comune em relação à face, assim como à discussão sobre o
número de dentes. (Da Vinci corrigiu Aristóteles, que sugeriu que os
homens tivessem mais dentes que as mulheres.)
Outra proeza de anatomia fornece
a primeira descrição precisa das artérias meníngeas. Da Vinci
considerava significativo o suprimento de sangue para o cérebro, como a
fonte de "espírito vital" para os ventrículos. Esse diagrama mostra
também os nervos cranianos indo para o centro geométrico do cérebro,
onde ele posicionava o senso comune. Os nervos, na realidade, não
convergem dessa maneira; portanto, seu arranjo seguiu o que ele pensava
que deveria ser, em vez do que ele na verdade observara.
Para Da Vinci, o julgamento da
informação pela alma ocorria também no senso comune. "A alma parece
residir no julgamento e o julgamento parece estar localizado naquela
parte onde todos os sentidos se encontram, e ela é chamada de senso
comune", escreveu por volta de 1489. "Todo o nosso conhecimento tem sua
origem em nossas percepções (dos sentidos)", concluiu. Objetos visuais,
cheiros e sons convergem para o senso comune, enquanto "cordas
perfuradas" transmitem informações sensoriais a partir da pele.
FUNDAMENTO DA VIDA
Uma metáfora militar foi o modo como tentou explicar que o
desenvolvimento motor é controlado também pelo senso comune e pela alma.
Como afirmou, "os nervos com os seus músculos obedecem aos tendões como
os soldados obedecem aos oficiais, e os tendões obedecem ao senso comune
como os oficiais obedecem ao general. Portanto, a articulação dos ossos
obedece ao nervo, e o nervo ao músculo, e o músculo ao tendão, e o
tendão ao senso comune. E o senso comune é o lugar da alma, e a memória
é sua munição, e a imprensiva é seu padrão de referência, porque o
sentido conta com a alma e não a alma com o sentido. E onde o sentido
que serve a alma não está a serviço da alma, todas as funções daquele
sentido também são deficientes na vida daquele homem, como é visto
naqueles nascidos mudos e cegos". Seu interesse pela alma geralmente
desembocava em questões como essa sobre doença. Ele escreveu: "Como os
nervos às vezes operam por eles próprios sem nenhum comando de outras
partes atuantes da alma. Isso é claramente aparente, pois você vê
paralíticos e aqueles que estão tiritando de frio moverem partes do
corpo que tremem, como cabeça ou mãos, sem a permissão da alma; e a alma
com todas as suas forças não pode evitar o tremor dessas partes. A mesma
coisa ocorre com a epilepsia e com várias partes tais como o rabo dos
lagartos".
Como suas teorias sobre a mente
eram baseadas nas leis da física, ele às vezes era levado a direções
inesperadas. Argumentava longamente, por exemplo, que fantasmas não
podiam existir. "Não pode haver voz onde não há movimento ou percussão
do ar; não pode haver percussão do ar onde não há instrumento; não pode
haver instrumento sem um corpo; e, sendo assim, um espírito não pode ter
nem voz nem forma nem força."
Depois de 1493, Da Vinci
abandonou as pesquisas de anatomia durante 15 anos. Permaneceu em Milão
ao longo dos anos 1490, trabalhando na corte de Ludovico Sforza,
participando de projetos artísticos como A última ceia, trabalhando em
engenharia civil e militar, e escrevendo seu tratado sobre mecânica
chamado Elementos das máquinas. Em 1505, prosseguiu com seus estudos
sobre o vôo dos pássaros e a viabilidade de aeroplanos movidos por
homens e planadores.
O foco que mantinha na matemática
foi acentuado à medida que tentava aplicar a ciência da perspectiva às
suas pinturas. Seus esforços foram moldados por um desejo obsessivo de
entender o que chamou de quatro poderes da Natureza: movimento, peso,
força e percussão.
A crença de Leonardo da Vinci no
corpo como tema de estudos de mecânica para essas quatro forças o levou
a inovações impressionantes quando ele voltou ao tópico anatomia.
Consideremos seus estudos sobre o coração. Ele foi o primeiro a perceber
que o órgão tem quatro câmaras, e não duas, e descobriu os átrios
(chamados por ele de os dois "ventrículos superiores"). Da Vinci supôs
corretamente que os átrios se contraíam para impulsionar o sangue.
Durante uma autópsia, chegou a identificar um defeito do septo atrial,
buraco no septo que separa os dois átrios. Fez um molde de vidro
tridimensional da aorta para estudar sua função e investigou
detalhadamente (até mesmo com modelos de vidro) as válvulas tricúspide,
pulmonar, mitral e aórtica. Ele descobriu também a banda moderadora,
movimento muscular no ventrículo direito.
E, então, quando Da Vinci retomou
suas explorações da estrutura e função do cérebro, em 1508, sua
abordagem foi construída sobre uma base mais confiável do que ocorrera
com seus estudos iniciais. Ele inventou uma técnica brilhante: depois de
perfurar um buraco na base do cérebro de um boi morto, usou uma seringa
para injetar cera quente nos ventrículos. Quando a cera se fixava, ele
cortava fora o tecido cerebral e conseguia fazer um molde razoavelmente
preciso dos ventrículos. Esse é o primeiro uso conhecido de um meio
solidificante para medir o tamanho e a forma de uma estrutura interna do
corpo, e dá um exemplo de como Leonardo usou suas habilidades de artista
- nesse caso, de escultor - para desenvolver uma nova abordagem
científica.
Da Vinci conseguiu desenhar de
forma impressionante uma cabeça humana, desta vez retratando os
ventrículos de maneira mais realista baseado no que havia observado no
boi .
Igualmente astuto foi o
posicionamento dos nervos cranianos. Podemos identificar sete pares,
incluindo os nervos olfativos, os quais nunca haviam sido descritos como
nervos cranianos, e os nervos ópticos. Ele foi o primeiro a diagramar
com realismo como os nervos se cruzam no quiasma óptico. Todos esses
nervos cranianos não mais entravam nos ventrículos, como ocorria nas
ilustrações tradicionais, mas em vez disso atravessavam o tecido
cerebral que circundava o quiasma. Progrediu como anatomista a ponto de
desenhar o que havia visto, mesmo quando isso contradizia o enorme peso
da tradição.
A ANTECIPAÇÃO DO GÊNIO
Da
Vinci executou seus experimentos sobre o cérebro dentro de um contexto
mais amplo de seus estudos sobre a natureza dos estímulos sensoriais e
sobre a função do olho. Manteve uma teoria bastante tradicional de como
o olho detecta as imagens das coisas que vemos. A luz, acreditava, é uma
"força" que leva raios visuais de um objeto até o olho na forma de
"pirâmides" que encontram os olhos no topo da pirâmide.
Ondas de "percussão"
atravessariam pupila e lentes para o nervo óptico na imprensiva e então
para o senso comune, onde entrariam conscientemente. Tendo lido a
literatura sobre óptica e então fazendo suas próprias experiências, Da
Vinci forçou a conclusão de que vemos objetos porque o olho recebe luz.
Essa opinião opunha-se às de Platão, Euclides, Galeno e outros, que
sustentavam que a força visual emanava do olho, embora tenha sido
apoiado por alguns, incluindo o grande médico e filósofo árabe Alhazen.
Apesar de desafios como esse,
Leonardo da Vinci deu passos enormes durante sua vida. Se pudesse viajar
no tempo para visitar nossa sociedade, certamente ficaria encantado com
o progresso na compreensão das funções físicas do cérebro por meio da
observação e da experimentação. Ao mesmo tempo, poderia se surpreender
ao saber quantas perguntas colocadas por ele permanecem sem resposta
completa pela neurociência moderna: Como lemos ou lembramos? Por que
algumas pessoas têm retardo mental ou epilepsia? Por que sonhamos ou até
mesmo dormimos? O que é a alma? Graças em parte aos fundamentos
estabelecidos por Da Vinci e outros, talvez possamos respondê-las dentro
dos próximos cinco séculos.