A soprano italiana chegou aonde chegou
porque soube sempre escolher com cuidado os papéis a serem
interpretados.
Ouça a "Cena da Carta",
de Tchaikovsky
João
Luiz Sampaio
São Paulo -
Aos 70 anos de idade
e com 50 anos dedicados ao canto lírico, Mirella Freni, que reinou ao
lado da conterrânea Renata Scotto no pós-Callas, chegou aonde chegou
porque soube sempre escolher com cuidado os papéis a serem
interpretados. E o resultado é uma longa fila de grandes trunfos,
reunidos no disco duplo que a Universal acaba de lançar no mercado
nacional, uma das muitas homenagens previstas para este ano.
Foi o austríaco Herbert von Karajan quem deu a Mirella os primeiros
empurrões na carreira. "Conosco, não era necessário palavras. Bastava
estarmos juntos e a coisa fluía", ela lembra. Foi ele também quem a
orientou a esperar antes de enfrentar alguns papéis e iniciar de fato a
carreira. "Por que continuo a cantar ainda hoje? Porque aprendi, com
ele, a dizer não." Esse "não" fez diferença. Freni evitou papéis como
Butterfly ou Aida por um bom tempo - e quando os interpretou, foi ao
lado de Karajan, assim como ocorreu com a Desdêmona do Otello,
gravada em vídeo no início dos anos 70, um dos primeiros registros da
jovem que já dava sinais claros de autenticidade e qualidade vocal (esse
vídeo existe em DVD da Unitel).
Outro registro de início de carreira, a da Nanetta do Falstaff,
também está no disco agora lançado. Dos anos 60, é um dos seus primeiros
trabalhos. E ao ouvi-lo, chama atenção não apenas a bela voz. Há algo
mais, um apurado - e delicioso - cuidado com as palavras e seus
significados. "O grande desafio do cantor é encontrar um meio de
expressão", ela explica. "Ter uma bela voz ajuda? Muito, é fundamental.
Mas é preciso saber usá-la como instrumento para se atingir algo mais. A
expressividade. Nas master classes que dou, é o que me chama mais
atenção. Ali estão aquelas vozes maravilhosas, saindo de cantores que
não sabem o que estão dizendo. Não dá para falar em amor, ´amore´, sem
sentir lá no fundo o que se canta."
O
curioso é que ela afirma que foi o repertório russo que a ajudou a
entender isso definitivamente. Seu segundo marido, o búlgaro Nicolai
Ghiaurov, morto no ano passado, é quem a convenceu a enfrentar papéis
como a Tatiana do Oniéguin, de Tchaikovsky, que ela gravou em
1988 com James Levine. "Sou apaixonada por vozes e sempre adorei ouvir
aqueles cantores russos maravilhosos. Aí resolvi cantar aquele
repertório. Você trabalha muito, estuda, ensaia. Mas, quando está no
palco, é como se estivesse em meio a um sonho. Essa sensação é única. E,
enquanto não sente isso, o cantor não está realmente pronto."
E
isso, claro, é um processo. "Quando era jovem, sentia tudo intensamente.
No início, há uma atração pela beleza, especialmente no repertório
italiano, no bel canto, pela melodia, pelas linhas do canto. Depois, a
experiência muda um pouco. E essa beleza, essa qualidade vocal, acaba se
transformando num modo, um caminho, para você olhar lá dentro. E tentar
descobrir o que quer dizer cada palavra. E, conseqüentemente, a melhor
maneira de pronunciá-la."
Mirella Freni conversou com a reportagem por telefone, de Nova York.
Está há 40 dias nos EUA, cantando e sendo homenageada. Tem ainda todo um
futuro pela frente, diz. "Minha mãe está com 88 anos e muito de minha
força vem do exemplo dela." Em maio, o Metropolitan Opera House, de Nova
York, promoverá uma gala em sua homenagem. Estarão lá os maestros, os
cantores com quem dividiu a carreira e o público que fez dela a grande
soprano do teatro durante décadas. E depois? "Depois? Não sei. Só sei
que agora quero ir para casa, descansar um pouco. Aí, veremos."