MARCELO COELHO
Acaba de sair, pela editora
Record, uma nova tradução de "A Alegria", do poeta italiano Giuseppe Ungaretti
(1888-1970). O livro foi escrito entre 1914 e 1919 e reflete a experiência do autor nas
trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
São poemas muito curtos, às
vezes só com dois ou três versos -como este, por exemplo, escrito na noite de 22 de maio
de 1916: "Balaustrada de brisa/ para apoiar nesta noite/ minha melancolia".
Outro poema, de dois versos,
diz apenas: "Entre uma flor colhida e outra ofertada/ o inexprimível nada".
Chama-se "Eterno".
Não há nada de muito alegre
nesses dois poemas e muito menos em "Soldados", escrito em julho de 1918:
"Se está como/ no outono/ as folhas/ sobre as árvores". De forma mais
indireta, também o poema intitulado "Longe", de 15 de fevereiro de 1917, se
refere à guerra: "Longe longe/ como a um cego/ me levaram pela mão". Em
italiano, o ritmo talvez lembre o de soldados marchando: "Lontano lontano/ come um
cieco/ m'hanno portato per mano".
Para procurar a
"alegria" do título, temos de fazer um caminho um pouco mais longo pelas
páginas do livro. Alguns poemas de Ungaretti descrevem as noites passadas em claro, em
algum posto solitário de vigia, ou ao lado de outros soldados na trincheira. "Nesta
escuridão/ com as mãos geladas/ sinto/ o meu rosto// Vejo-me/ abandonado no
infinito", anota Ungaretti em 20 de abril de 1917.
O tom se torna quase
estridente em "Peregrinação" (16 de agosto de 1916): "De emboscada/
nestas cloacas/ de escombros/ horas e horas/ venho arrastando/ minha carcaça/ gasta de
lama/ como uma sola/ ou uma semente/ de espinheiro// Ungaretti/ homem de dores/ basta uma
ilusão/ para te dar coragem// Um holofote distante/ põe um mar/ na bruma".
Mas nessa última imagem
talvez seja possível divisar a "alegria" a que se refere Ungaretti.
É de supor que a passagem da luz de um holofote sobre o campo de batalha vazio, à noite,
seja rapidíssima. Os versos surgem como que prontos, instantâneos. Temos a impressão de
que estamos lendo a própria mente de Ungaretti, no exato momento em que ele viu a cena;
e, entre a cena que ele viu e a comparação literária que lhe veio à mente, tampouco
parece ter havido intervalo de tempo.
Ver, escrever e ler se tornam
simultâneos. A maioria dos poemas do livro, com efeito, está sempre
"acontecendo" diante de nossos olhos, no tempo presente.
Deve ser bem essa a
experiência de alguém que, no meio dos tiros e das bombas, toma a consciência a cada
instante do fato de estar vivendo. Outra noite é narrada em "Vigília":
"Uma noite inteira/ jogado ao lado/ de um companheiro/ massacrado/ com a boca
arreganhada/ voltada para a lua cheia/ com a convulsão/ de suas mãos/ entranhada no
silêncio/ escrevi/ cartas cheias de amor// Nunca estive/ tão aferrado à vida".
Lembro-me de ter escrito há
alguns meses um artigo discutindo a idéia de que a felicidade sempre se localiza no
passado; não acredito muito nisso. Mas nossa tendência é ver como felizes só os dias
que já se cristalizaram, isto é, que já foram purificados do medo, das memórias, das
projeções e dúvidas que tínhamos enquanto os estávamos vivendo.
Seja como for, se a felicidade
se localiza de preferência no passado, a alegria tem a vocação, sem dúvida, de ser
experimentada no presente; é instantânea, não reflexiva; irrompe, sempre
contemporânea.
Por isso os poemas de "A
Alegria", curtíssimos, sobrevivem de forma tão miraculosa. Não há eternidade
nenhuma neles. Para lembrar o começo deste artigo, entre a "flor colhida" e a
"outra ofertada", existe um "nada" que, à primeira vista, nos parecia
um abismo; o poema, entretanto, justamente celebra esse "nada", entendendo-o
como uma ausência de qualquer distância.
A guerra de 1914 talvez já
fosse, para alguns poetas, o "fim da história" de que tanto se falou nos
últimos anos; a idéia de uma contemporaneidade sem rumo, em que o simples fato de
sobreviver já é motivo de espanto, certamente não nos é estranha. Ungaretti
registra-a, dia a dia, no extremo de seus versos.
Relendo o primeiro poema que
citei -"Balaustrada de brisa/ para apoiar nesta noite/ minha melancolia",
entendo que não é tão romântico e "poético" assim. Imagino que um soldado,
enfiado nas trincheiras, encosta os cotovelos na terra; balaustrada bem frágil para quem
está próximo de tombar morto no chão.
O livro de Ungaretti já tinha
sido traduzido por Sérgio Wax para a editora Roswitha Kempf em 1989, sem o texto italiano
ao lado. A edição da Record tem tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti.
Sérgio Wax fala de um "afanado bando de calceteiros" num trecho que Cavalcanti
traduz como "afobada tropa de pedreiros"; em compensação, Cavalcanti escreve
"diáfano ascenso/ de nuvens colmadas", enquanto Wax fala de uma "diáfana
ascensão/ de nuvens cheias".
Ungaretti sobrevive.
(©
Folha de S. Paulo)
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