Tazio Secchiaroli
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Cenas das
filmagens de "A Viagem de Giuseppe Mastorna" |
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INSPIRANDO-SE EM UM CONTO DE DINO
BUZZATI, O DIRETOR ITALIANO PRETENDIA FAZER "UM FILME SOBRE COISAS
MORTAS", MAS FOI PROCESSADO PELO PRODUTOR DINO DE LAURENTIIS POR NÃO TER
CONCLUÍDO O TRABALHO, INICIADO EM 1966
CARLOTTA MISMETTI CAPUA
A Viagem de Giuseppe Mastorna", o filme
que Fellini planejou fazer e nunca fez -embora tenha tentado rodá-lo
várias vezes, desistindo em seguida-, narraria a vida de um
violoncelista após a morte.
No assim chamado mundo do além, Mastorna
desembarcava numa cidade que parecia um gigantesco cartão-postal de
todas as cidades do mundo, habitado por gente de todas as partes do
planeta. Encontrava os pais serenamente leves, livres enfim do papel que
lhes cabia.
Reencontrava os brinquedos da infância,
que ele costumava destruir; as mulheres amadas, todas mal amadas.
Ou seja, depois da morte, era a própria
vida que se reapresentava, com desejos e conflitos, remorsos e dúvidas.
"Não se trata de um filme sobre a transcendência", disse Fellini, "mas
de um filme sobre coisas mortas, que estão numa zona estagnada. Aquelas
que precisam de uma morte verdadeira".
Que "A Viagem de Giuseppe Mastorna",
inspirado em um conto juvenil do escritor Dino Buzzati [1906-1972, autor
também de "O Deserto dos Tártaros"], fosse uma história sobre a morte
real ou sobre a morte interior, que Fellini não o tenha feito por
superstição -como disse Dino de Laurentiis ao levá-lo ao tribunal por
perdas e danos- ou porque fosse um filme que não conseguiu fazer -como
afirmará o próprio Fellini-, hoje tudo isso pouco importa. Fellini
queria um filme sem brilho, essa era a sua intenção. E sem cores. Mandou
desenhar e executar milhares de figurinos, todos de cor cinza: diversos
matizes de gris, tom sobre tom, do branco ao preto.
Imaginou Totó no papel de coveiro, Mina
como "hostess" do avião que caía, Franco Franchi e Ciccio Ingrassia como
aduaneiros. Encomendara a Giuseppe Rotunno o mapeamento da feira de
Milão, de Berlim Oriental e de Florença, para onde Mastorna regressa ao
final do filme, voando numa geringonça pilotada por uma menina chinesa,
como se fosse uma vassoura voadora.
Mas um filme que não foi feito não
existe, e o que hoje resta são poucas e preciosas relíquias. A única
cena rodada: o desembarque de Mastorna perdido em meio a uma forte
nevasca, muito cinza e barulhenta como um furacão, diante de uma
catedral gótica tão alta quanto um arranha-céu. Cena conservada por
Fellini do documentário "Block Notes di un Regista" [Anotações de um
Diretor], produzido pelos EUA em 1969.
O que fica é o fascínio dessa história
maldita, recontada em um recente documentário de Maite Carpio (exibido
em dezembro último na Casa do Cinema de Roma, quando também foi lançado
o livro de Alessandro Casanova sobre todos os filmes incompletos de
Fellini ["Scritti e Immaginati", Escrito e Imaginado, ed. Guaraldi
Universitaria]).
Resta também o roteiro, definido por
Tonino Guerra como "a história de uma melancolia oblíqua, como a perda
de um perfume". Restam os pensamentos do cineasta recolhidos ao longo
dos anos por Dario em "Cose Dette da F.F. a proposito del "Viaggio di G.
Mastorna'" [Coisa Ditas por F.F. sobre "A Viagem de G. Mastorna"].
Ressurreição
No entanto, mais tangíveis e vivas,
restaram as fotos de Tazio Secchiaroli, que foram expostas, em Roma, na
Cinecittàdue, na galeria de arte do centro comercial vizinho, perto dos
estúdios do Istituto Luce [Instituto Luz], onde foram feitos os testes
com Mastroianni no papel principal. Testes que Secchiaroli foi
discretamente convidado a documentar.
Havia poucas pessoas naquele dia; dez ao
todo, entre os colaboradores mais próximos: a histórica secretária de
edição Norma Giacchero, a discreta Liliana Betti, o figurinista Piero
Tosi, que escolhera para Mastroianni um riscado triste com uma longa
echarpe e um chapéu. E Giuseppe Rotunno, que circulava com a filmadora
ao redor da cena em que o ator era vestido, enquanto Fellini murmurava
com o seu vozeirão suave: "Marcellino, Marcellino, mas o que é que você
tem hoje...".
Tazio era um espectador silencioso: sabia
que Fellini não gostava de ser perturbado, e ele não perturbava. Por ser
discreto, Fellini sempre o chamava para os sets, quase todos
fotografados por ele, desde os anos 60 até os últimos filmes. Tazio
sempre usava a mesma película utilizada por Fellini, revelando as fotos
no mesmo estabelecimento em que o filme era revelado, para manter
integralmente a granulação da luz.
Essas fotos foram feitas com sua Leica 35
milímetros e, como de costume, fez apenas os contatos -e somente para
Fellini. Mas conservou por toda a vida, numa gaveta, as 48 fotografias
que foram expostas em Roma. Estavam todas no estúdio de Centocelle,
repleto de caixas meticulosamente organizadas, nas quais escrevia em
vermelho: Tazio 1, Tazio 2, Tazio cem.
Penduradas em seu estúdio, apenas três
fotografias: um retrato de Mastroianni fumando, iluminado pela luz de um
fósforo que se apaga; aquela famosíssima de Fellini, em que ele pula, de
chicote na mão, no set de "Oito e Meio"; e a do Altar da Pátria, ainda
hoje a mais solicitada ao filho de Tazio, que cuida do acervo do pai
(mais de 100 mil imagens).
Quanto às fotos do teste de "Mastorna",
Tazio Secchiaroli fez ampliações em grande formato, 50 por 70, em papel
especial, e as pôs à parte. Nunca havia feito grandes ampliações de
fotos que não iria usar. Quando o filho David as encontrou, conservadas
como algo único, pensou que tivessem sido preparadas para uma mostra ou
um livro. O fato é que Secchiaroli não quis publicá-las em vida, assim
como Fellini não chegou a exibir o seu grande "fantasma" "G. Mastorna".
A íntegra deste texto foi publicada no
jornal "La Repubblica".
(©
Folha de S. Paulo)
A OBRA-PRIMA FANTASMA
PARCEIROS EM SUCESSOS COMO "A DOCE VIDA"
E "OITO E MEIO", FELLINI E MASTROIANNI JÁ SE ESTRANHAVAM NAS FILMAGENS
DE "A VIAGEM DE GIUSEPPE MASTORNA", QUE SE TORNARIA UMA OBSESSÃO PARA O
CINEASTA
NATALIA ASPESI
As 48 fotografias de Tazio Secchiaroli, exibidas em Roma, documentam
melancolicamente que o filme em fase de filmagem estava destinado a não
nascer nunca. Mais ainda: naquela altura, ele já estava morto e
enterrado, e Fellini, em 1969, estava apenas desencavando seus restos
para o documentário "Block Notes di un Regista" [Anotações de um
Diretor], encomendado por uma TV norte-americana.
Percebe-se nele um ar de cansaço, de
encenação, e é óbvio que ninguém mais ali acreditava no projeto:
Mastroianni se olha no espelho, sonolento, e se irrita quando lhe metem
na cabeça o habitual chapéu felliniano; perdido na fumaça do cigarro,
como para disfarçar-se, quase não olha o mestre, que por sua vez parece
inquieto, concentrado nos gestos típicos de diretor, que observa através
da câmera apertando um olho, enquanto o ator ajusta o paletó. Apenas o
violoncelo, com toda sua corpulência, tem um aspecto concreto, apesar de
deslocado e melancólico: um objeto que sabe que nunca será protagonista
de nada.
A aventura inútil de "A Viagem de
Giuseppe Mastorna" tinha começado em 1966, quando Marcello Mastroianni
estava com 42 anos e Federico Fellini com 46 -ambos venerados, estrelas
de um cinema italiano que havia conquistado o mundo. Juntos, diretor e
ator haviam criado "A Doce Vida" [1960] e "Oito e Meio" [1963],
obras-primas que já faziam parte da história do cinema.
Sonhos, litígios e doenças
Agora, para aqueles testes sem objetivo,
eles se reencontravam e se estranhavam, incapazes de se entenderem, e
tentavam representar, juntos, um filme inexistente, que Fellini já havia
descartado depois de episódios de fúria, sonhos infaustos, litígios e
seqüestros judiciais, doenças misteriosas.
Um filme que jamais foi rodado, como se o
cineasta temesse sua realização e o percebesse como uma profecia
maléfica, uma nêmesis aterradora, um espantalho a ser mantido à
distância.
Um filme que nunca morreu, que se tornou
uma lenda, sobre o qual o próprio diretor dava a cada vez, e a quem lhe
perguntasse, uma versão diferente, imaginando-o para sempre como uma
meta suspensa no futuro, que cedo ou tarde seria alcançada, a
"obra-prima fantasma" que teria imortalizado sua arte.
Há um caráter amável e esquivo,
conciliador e irredutível, do grande autor em seu longo adiamento,
inclusive nessa sessão de fotos que ele sabia inúteis, um pretexto para
libertar-se da armadilha criativa em que se deixara cair sem se dar
conta.
A vida breve e o coma infinito de
Giuseppe Mastorna são muito bem relatados por Tullio Kezich no livro
"Fellini, uma Biografia" [lançado no Brasil pela ed. L&PM]. A idéia
surgiu muito antes, em 1938, quando Fellini ainda morava em Rimini e
tinha seus 18 anos; foi então que ele leu no semanário "Omnibus" um
conto de Dino Buzzati em que um garoto de 12 anos morre e se vê diante
de uma odisséia no mundo do além, para depois voltar à terra, após ter
compreendido o segredo da vida.
Essa história ficou na sombra de seus
pensamentos durante quase 30 anos, como um refúgio à realidade do
trabalho e do sucesso crescente.
Depois algo se rompe, e ele filma
"Julieta dos Espíritos" [1965], seu primeiro longa-metragem em cores,
experiência que o deixa insatisfeito, notando a decepção do público. Foi
na primavera de 1965, ao passar por Milão, que lhe veio a vontade de
conhecer Buzzati, autor daquele conto inesquecível: faz a proposta de
escreverem juntos o roteiro, e juntos freqüentaram magos videntes,
conversaram por mais de um ano, tudo inutilmente.
O violoncelista Giuseppe Mastorna
continua sendo uma figura nebulosa, plantada numa praça desconhecida,
silenciosa e sombria, diante de uma catedral gótica.
À medida que o roteiro avança na história
como se entrasse num sonho, o produtor Dino de Laurentiis, que pouco
antes havia fundado a "Dinocittà", vai investindo milhões no filme, todo
entusiasmado com sua primeira parceria com Fellini, sem se preocupar com
que o diretor lhe prometesse vagamente uma história que será "uma
experiência inefável, mística, o sentimento do todo". Escolhem-se
figurantes, preparam-se locações, desenham-se cenários e figurinos,
busca-se um ator principal que alivie o crescente mau humor do cineasta.
Fellini já está cansado de Mastroianni,
e, além disso, o ator estava comprometido com uma peça; Giorgio Strehler
gostaria de fazer o papel; Laurence Olivier não se interessa; Steve
McQueen impõe condições; quem sabe Paul Newman?
Isso leva mais de um ano, e nesse
meio-tempo morre Ernst Bernhard, o analista de Fellini, o que o deixa
desconsolado. Então ele escreve: "Caro Dino, estou me sentindo exausto e
sem ânimo; nessas condições, não posso realizar o filme".
Fora de si, o napolitano De Laurentiis
processa o diretor, declarando um prejuízo enorme, sem contar que, com
esse "comportamento irresponsável", 70 pessoas ficaram sem trabalho.
Na casa de Federico em Fregene, agentes
apreendem quadros e objetos, enquanto o cineasta se entrincheira em
casa, recusando-se a dar declarações. Poucos meses depois, os dois se
reconciliam em um passeio pela Villa Borghese [em Roma], acompanhados
pelos respectivos advogados. "Mastorna" será feito, e finalmente é
firmado um contrato com Ugo Tognazzi [1922-90], eufórico, enquanto
Fellini o considera muito terreno, ou seja, pouco neurótico para o seu
"Mastorna".
Maldição
Em abril de 1967, o filme já se tornou um
pesadelo: certa noite, sozinho em casa, Fellini passa muito mal e
desmaia. Por sorte é socorrido a tempo: a maldição de Mastorna abateu-se
sobre ele sob o misterioso diagnóstico de síndrome de
Sanarelli-Schwarzmann. De Laurentiis consegue vender por quase metade de
seu prejuízo o material filmado de "Mastorna" a um advogado napolitano,
Alberto Grimaldi, que já havia produzido dois faroestes com Sergio
Leone. Também ele será desiludido por Fellini, que se recusa a fazer o
filme, recomprando-o depois, em prestações, em 1971.
Mas a vida inexistente do pobre
violoncelista sem rosto ainda não terminou: em 1992, o cineasta o cede a
Milo Manara, para que o transforme em HQ.
Por que Fellini nunca realizou esse
filme? Muito se disse sobre o assunto, e ele mesmo falou de sonhos
premonitórios que o teriam feito abandonar o projeto. Talvez, mas
ninguém jamais levantou a hipótese de que o grande diretor tivesse
simplesmente intuído que o filme nunca chegaria a ser a obra-prima digna
de suas ambições e de sua fama.
Numa das tantas entrevistas que
generosamente concedia a jornalistas que o adoravam, Fellini disse:
"Como a carcaça de um navio afundado, "Mastorna" alimentou todos os meus
filmes seguintes".
A íntegra deste texto foi publicada no
jornal "La Repubblica".
Traduções de Maurício Santana Dias.
(©
Folha de S. Paulo)
Diretor chegou a consultar médium
O último longa de Fellini, "A Voz
da Lua" [1990], foi baseado no livro "Il Poema dei Lunatici", de Ermanno
Cavazzoni, que deu palestra na USP, em outubro de 2005, falando de seus
livros e relatando as peripécias que envolveram "A Viagem de Giuseppe
Mastorna". Segundo ele, antes de começar a rodar esse filme, Fellini
teria consultado um famoso médium da época, o qual vaticinou que, se ele
fosse concluído, o diretor morreria. Diante do sombrio prognóstico, o
cineasta teria preferido deixar o projeto de lado.
Cavazzoni também esclareceu que o
nome do protagonista, "Mastorna", é uma corruptela da frase italiana "Ma
si torna?": "Mas se volta [do além]?". Parece que Fellini estava
tentando retornar a esse longa quando morreu, em 1993.
(MSD)
(©
Folha de S. Paulo)
Federico Fellini em 12 filmes
Os Boas-Vidas (1953) - Primeiro sucesso internacional, se passa
em Rimini e é de caráter autobiográfico
As Noites de Cabíria (57) - Giulietta Masina, mulher do cineasta,
é uma prostituta que precisa superar uma série de situações humilhantes
A Doce Vida (60) - Um retrato de Roma em seu apogeu, com Marcello
Mastroianni e Anita Ekberg
Oito e Meio (63) - Autobiográfico e considerado seu filme mais
pessoal, apresenta um cineasta (Mastroianni) em crise criativa
Julieta dos Espíritos (65) - Masina é uma dona-de-casa que viva
com o marido opressor e insensível
Satyricon (69) - Adaptação da obra de Petrônio, é considerado um
dos filmes mais bizarros do cineasta
Roma (72) - Um tributo à cidade, mistura ficção com cenas reais,
sendo narrado pelo próprio Fellini
Amarcord (73) - Nostálgico, traz as memórias de juventude do
cineasta na cidade de Rimini, sob Mussolini
Casanova (76) - Donald Sutherland interpreta o libertino que vive
aventuras amorosas e políticas
Ensaio de Orquestra (79) - Uma hilária orquestra é usada como
metáfora para a sociedade italiana
Cidade das Mulheres (80) - Em narrativa onírica, o filme faz uma
paródia ao universo das mulheres
Ginger & Fred (85) - Tributo ao passado e à memória, com o
reencontro de um casal de antigos dançarinos
(©
Folha de S. Paulo)
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