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O conhecimento da dor

20/01/2006
 

Cena de As Chaves da Casa. No detalhe, Gianni Amelio

A PARTIR DA HISTÓRIA DE UM PAI QUE ABANDONA O FILHO NASCIDO COM DEFICIÊNCIAS FÍSICAS E MENTAIS, O CINEASTA GIANNI AMELIO CONSTRÓI UMA REFLEXÃO SOBRE O SIGNIFICADO DO OUTRO NAS RELAÇÕES HUMANAS

MARIA ANDREA MUNCINI
ALDO VILLANI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

   Gianni Amelio nasceu em 1945 em San Pietro di Magisano, uma pequena aldeia na estrada que vai de Magisano a Taverna, na Calábria. Depois, abandonando as estreitas curvas entre as colinas ásperas de Catanzaru à beira do Sila, ela se distende reta até o mar.

   Amelio nasceu em uma família de camponeses pobres, marcada pela imigração, pelas separações e pelas ausências. Só conheceu o pai, emigrado para a América do Sul, aos 18 anos. Raízes, sim, mas não nostalgia, não aquela que com freqüência se torna autocomiseração, diz Amelio.

   Quando decidiu ir para Roma, diz, não foi uma emigração: deixou a Calábria "por motivos de ordem técnica", porque "Roma é o centro do cinema" e, se alguém quer fazer cinema, deve ir para onde é feito. Não pode se contentar em vê-lo das barulhentas poltronas do Politeama como, quando, ainda jovem estudante, era um espectador "frenético, onívoro".

   Abandona os estudos na faculdade de filosofia, entra na RAI e, depois do documentário "Bertolucci secondo il Cinema" (1976), filma para a televisão "Il Picolo Archimede" (O Pequeno Arquimedes, 1979), extraído de um conto de Aldous Huxley. O princípio chega com "Colpire al Cuore" (1983), drama de gerações com fundo nos anos de chumbo.

   O sucesso e o reconhecimento nacional e internacional chegam com "O Ladrão de Crianças" ("Il ladro di bambini", 1992), "América - O Sonho de Chegar" ("Lamerica", 1994) e "Assim É que Se Ria" ("Così ridevano", 1998), a que se seguem seis anos de pausa que se concluem com este "As Chaves de Casa" (2004), filme inspirado muito livremente no livro "Nascidos Duas Vezes" (Cia. das Letras), de Giuseppe Pontiggia.

   Só inspirado, porque Amelio, com Stefano Rulli e Sandro Petraglia, reescreveu profundamente um roteiro (que Pontiggia teve tempo de ler e aprovar antes da sua morte).

   Em "As Chaves de Casa" se retoma ainda o tema da relação pai-filho já enfrentado em outros de seus filmes. Desta vez, é central a deficiência física e extremamente envolvente a atuação de um verdadeiro paraplégico como Andrea Rossi no papel de Paolo, dois aspectos que constituem o duplo plano sobre o qual o filme é estruturado.

   De um lado, o drama da deficiência como patologia e diversidade. De outro, a difícil e contraditória relação do pai com o filho depois de uma paternidade recusada e a tentativa de uma recuperação tardia, juntamente com a busca de uma nova afetividade.

   Assim, a viagem em direção a novos tratamentos se torna metáfora de um percurso de aproximação e compreensão, evitando com determinação, porém, a possível situação do fácil sentimentalismo. Diante de um pai que com esforço decide acertar as contas com sua consciência, o espectador é levado a se aproximar com discrição e sem falsidade daquele labirinto moral e afetivo que é também o de uma sociedade que talvez preferisse não ver e não saber.

   Na entrevista abaixo, Amelio também fala da relação com o Brasil e por que escolheu uma canção interpretada por Virgínia Rodrigues para pontuar seu filme.
 

Folha - Gostaria de falar um pouco sobre a canção de Virgínia Rodrigues que o sr. inseriu em "As Chaves de Casa", e sua relação com o Brasil.

Gianni Amelio - Digamos que este meu amor pelo Brasil é de longa data e tinha necessidade de ser reavivado. Quando eu tinha uns 25 anos, escutei uma música chamada "Acrílico", de Caetano Veloso [em "Caetano Veloso", de 1969], e isso foi tão importante quanto, como se diz, a leitura dos clássicos russos ou ter assistido a um filme de Bergman ou a um filme do neo-realismo.
Quero dizer que considero o fato de ter escutado aquele disco uma das experiências culturais mais profundas da minha vida.
Já a canção que incluí no filme, de Virgínia Rodrigues, fala de uma rapariga, muito bela, mas não sei de qual idade, e eu escutava sem conhecê-la, sem saber qual era o sentido das palavras, talvez um canto religioso antigo, porque era difícil entender também a tradução inglesa.
Um dia tornei a escutar a canção enquanto escrevia o roteiro do filme, em casa, num canal de televisão via satélite, como pano de fundo de um desfile de moda. Pois bem, durante semanas permaneci sintonizado naquele canal, com a esperança de tornar a escutar aquela canção, e aconteceu que realmente a transmitiram e, por sorte, a gravei.


Pense como se sente um pai diante de um filho que não poderá vingá-lo porque é já um ser condenado


Depois parti em busca do título da canção e de Virgínia Rodrigues, a cantora, indo a todas as lojas de discos. Mas não o consegui até que a companheira de meu músico conheceu em Londres o produtor de Rodrigues. Assinei logo um contrato e pude inserir a canção no meu filme, onde é possível escutá-la duas vezes, como fundo dos créditos no início e no fim e como fundo às palavras que pai e filho trocam, no hotel.
Sou apaixonadíssimo por esse disco, que se intitula "Nós" e é o único disco de Virgínia Rodrigues conhecido na Itália. A canção se chama "O Deus do Fogo e da Justiça".
 

Folha - Em "O Conformista", de Bertolucci, há um trem que corre com imagens de dentro e de fora como se fossem o interior e o exterior dos próprios personagens. Também no seu filme há um trem que corre, o que me fez me perguntar se isso não tinha algum significado...

Amelio - Em "O Conformista", as imagens são do interior do trem em direção ao exterior, e Bertolucci a realiza com dissolvência sobre transparências, que são projeções no estúdio de cenas filmadas separadamente no exterior, para usá-las em cenas externas que devem, por necessidade, ser filmadas em estúdio.
Por exemplo: uma cena no aposento em que estamos, cuja janela dá para um pátio, pode ser filmada no estúdio cinematográfico em cuja janela podemos colocar as imagens que queremos, como se o aposento estivesse em outro lugar.
No meu filme acontece o contrário: são os trens que estão em movimento do lado de fora do quarto do hotel. Você me pergunta qual é o significado daqueles trens em movimento: é apenas o sentido da precariedade da situação em que os personagens se encontram, porque um quarto de hotel é a coisa mais precária que existe, um ambiente que habitualmente se deixa e depois se esquece, talvez por toda a vida.
Sobretudo, precariedade do vínculo sentimental por parte do pai, que não sabe até que ponto recuperará o amor do filho, enquanto o filho não compreende absolutamente que o pai está ali para que nasça um afeto por ele. Eu interpretava como se os dois estivessem numa espécie de tapete voador, e, então, os trens urbanos vistos passando no exterior deviam dar o sentido de instabilidade, de alguém que não se sente firme em sua própria casa, entre as coisas habituais que pode considerar como apoios, sustentação psicológica.
Muitas pessoas me perguntaram por que ambientei o filme fora da Itália. Respondo assim: se o tivesse ambientado na Itália, o protagonista poderia resolver todos os seus conflitos, consigo próprio e com o filho, alojando o filho com algum parente ou uma amiga, uma conhecida.
Em certo sentido, quis colocar cada um dos dois com duas deficiências diferentes: uma, a do filho; outra, a do pai, que é a deficiência de não poder se mover com liberdade em uma cidade que desconhece, da qual ignora até o idioma, o alemão, ali falado, que ignora mesmo o inglês por causa de sua cultura modesta; e tudo isso o torna, de algum modo, deficiente.
 

Folha - Vi seu filme três vezes e me agradou pela música, a recitação etc., mas o que eu buscava compreender era por que não chorava.

Amelio - A coisa poderá parecer exagerada a você e talvez eu seja presunçoso, mas eu pensava em certas coisas que aconteciam só a Anna Magnani, por exemplo em "Belíssima", de Visconti, um filme que toca no tema dilacerante de uma mãe que vê a filha mercadejada, ridicularizada. Naquele filme, Magnani conseguia comunicar a força que um ser humano tem diante da vida, que arregaça as mangas para ir adiante apesar de tudo, que não deve e não quer chorar sobre o leite derramado. Ela era capaz de urrar, de gritar de raiva, mas não de choramingar.
No dialeto romano em que deixei o rapaz falar e no tom romano do pai, vi uma espécie de força plebéia, aquela em que, quando a casa está desmoronando, você se determina em primeiro lugar a se pôr a salvo e, depois, a recuperar os tijolos para reconstruí-la. Andrea não é uma pessoa complexada porque seus pais foram inteligentes ao não fazê-lo crescer lamentando a invalidez.
Procurar Andrea queria dizer procurar um rapaz que encarnasse essa minha vontade de não chorar sobre o leite derramado. Não foi fácil, porque diante desta doença sempre se sofre muito.
Já o pai é alguém que, se tivesse tido um filho normal, não seria um homem forte.
 

Folha - Também a imagem quase materna de Charlotte Rampling o põe diante da realidade...

Amelio - De fato é uma inversão de papéis, se quisermos. Seja diante da doença ou da vida, é mais viril a reação da personagem de Rampling do que a do personagem de Rossi Stuart. Ele deve aprender a alimentar seu filho, a ministrar-lhe o remédio certo no momento certo, a lavá-lo e assim por diante. Além do fator invalidez, que tampouco é desenvolvido no filme, penso que o verdadeiro tema seja o da incapacidade, masculina, de enfrentar a realidade de modo adulto, consciente.
 

Folha - Mas, para dizer tudo isso, era preciso recorrer à deficiência?

Amelio - Sim e não, desde que se enfrente uma narrativa de pontos de vista diferentes. Em vez de contar a história de um pai que sai de casa porque se apaixona por outra mulher, abandonando até seu filho, quis contar algo mais inquietante. Se ele tivesse abandonado o filho por ter se apaixonado por outra pessoa, teria para si próprio a justificação do amor que o leva para fora da família.
Mas, aqui, o que o leva para longe da família é o medo de não poder aceitar um filho naquelas condições. Isto é, continuo a afirmar que os homens fazem filhos por vingança.
Explico-me: desejo que meu filho me compense de tudo aquilo que a vida me tirou ou não me deu. Tive a vida que tive, mas, se concebo um filho, desejo ardentemente que ele seja mais rico, mais afortunado, mais inteligente, mais belo, sobretudo mais hábil do que eu ao enfrentar aquilo que eu talvez não tenha sido capaz de enfrentar ou, então, enfrentar o destino adverso, que me deu só desilusões... Pense então como se sente um pai diante de um filho que não poderá vingá-lo porque é já um ser condenado.
Nesse ponto se somam duas desgraças e dois rancores: o rancor da vida e o rancor de um destino sem possibilidade de resgate, diante do qual só resta a fuga. O pai fala com freqüência de Francesco, o filho belo e mais novo, de quem mostra as fotografias como se estivesse vingando tanto a si mesmo como o irmão maior e desafortunado.
 

Folha - A escolha de Berlim e, depois, do norte norueguês -em suma, de um clima frio que parece se enregelar progressivamente- tem um significado metafórico, por contraste, com o desenvolvimento da relação entre pai e filho?

Amelio - A escolha de Berlim, em particular, deveu-se a dois motivos. O primeiro é que ela não é a primeira cidade em que se pensa numa chave turística: se você é italiano, pensa primeiro em Paris, em Londres ou em Barcelona ou em Madri que talvez convidem também pelo idioma, enquanto que a língua alemã para nós, latinos, é mais desagradável, com um som que erroneamente definimos como duro, forte, violento.
Andrea não tem nenhuma percepção disso, mas o pai tem, quando assiste às ordens que a fisioterapeuta dá a Paolo durante os exercícios, que parecem evocar-lhe de alguma maneira os lager nazistas. Escolhi Berlim não porque penso que o nazismo ainda esteja vivo na Alemanha, mas porque, entre aqueles da minha geração do imediato pós-guerra, continua presente a imagem violenta e dura da tragédia do Holocausto e a convicção de que um rapaz como Paolo, naquela época, não teria sobrevivido nem sequer uma hora.
Por uma reviravolta também positiva da história, Berlim é hoje a vanguarda desse tipo de terapia. Não filmamos num hospital de verdade, mas reconstruímos tudo em outro lugar. Tivemos como consultores médicos que cuidam verdadeiramente de tetraplégicos e de paralisias espásticas. Alguns médicos se ocuparam realmente de Andrea, prescrevendo-lhe cuidados que ninguém na Itália lhe dera até então e que, hoje, continua a seguir.
E, depois, a Noruega. Queria uma abertura com paisagem que fosse distante da luz quente do Mediterrâneo, isto é, uma luz clara, porém muito fria, mesmo para o final que desejava, quase de ficção científica, uma paisagem marciana, de planaltos, com um céu de tal cor que só depois se compreende que é verão, porque os dois estão vestidos com roupas estivais. Ao mesmo tempo há também neve aqui e ali, há montanhas e lagos, mas não se vêem seres humanos em volta.
 

Folha - Naquele momento o pai estava recuperando sua paternidade...

Amelio - Talvez sim. Eu queria que aquela paisagem não se desenrolasse em público, mas que fosse algo que os atingisse de maneira total, tanto que, na cena final, eles se fundem com a pedra onde estão sentados, com as montanhas.
 

Folha - Até que ponto o fato de Andrea ser realmente portador de deficiência condicionou o trabalho no set? De que maneira o roteiro foi adaptado às suas exigências pessoais? Antes ou durante a filmagem?

Amelio - Parece-me que a substância de sua pergunta, de maneira direta, pode ser esta: "Por que, para interpretar o personagem de Paolo, se escolheu um rapaz realmente portador de deficiência?". Direi que muitas pessoas se escandalizaram com essa escolha. Pergunta semelhante me foi feita numa entrevista coletiva no Festival de Veneza [em 2004], e alguém a repetiu na resenha do filme, com uma ponta clara de preconceito: como se um rapaz portador de deficiência não pudesse, por isso, trabalhar como ator.


"Por que, para interpretar o personagem de Paolo, se escolheu um rapaz realmente portador de deficiência?", perguntaram


Se fosse assim, seria absurdo e imoral. Andrea interpretou o roteiro e ao mesmo tempo contribuiu com uma série de coisas que não previ. Quando filmei "O Ladrão de Crianças", improvisei muitas coisas sobre eles porque eram capazes de agir por conta própria se lhes fosse explicado qual era o tema da cena. Com Andrea não era possível, porque ele tem (não sei qual seja a definição exata, do ponto de vista da medicina) uma lesão cerebral que o torna semelhante a uma criança de quatro, cinco anos, em vez de um rapaz de 17.
Isso diz respeito ao desenvolvimento da inteligência, à coordenação dos pensamentos, à lógica de ações e discursos. Se eu o tivesse deixado livre, seria como se ele andasse solto em temas e coisas que poderiam não ter qualquer relação com a história do filme.
 

Folha - Ele deveria estar sempre presente...

Amelio - Sim, porque era muito consciente, sobretudo porque eu estava ao lado, levando-o pela mão. Na vida, ele tem a sorte de contar com a presença de uma família extraordinária: o pai e a mãe são duas pessoas de muita inteligência, que o educaram de maneira que não tivesse complexos. A mãe me disse que ele a fez compreender o que significa a palavra "vergonha".
Pus isso no filme: há uma cena em que Rampling diz a Rossi Stuart: "Compreendi que você era o pai do rapaz pela maneira como olhava ao redor". E depois: "Disse para mim: este homem se envergonha".
 

Folha - No começo de sua carreira, o sr. trabalhou muito para a televisão. Em que medida foi uma escolha?

Amelio - Mais do que escolha, foi uma necessidade, diante de um cinema que nos anos 70 parecia sucumbir diante do desenvolvimento da televisão. Tive experiência apenas como assistente de direção e tive de aceitar fazer televisão por falta de opção. Foram necessários dez anos para poder rodar meu primeiro filme, "Colpire al Cuore", ambientado em Milão, quando deveria ser em Turim.
A passagem do trabalho televisivo para o trabalho de cinema é representado por "Il Piccolo Archimede", filme rodado com máquina de cinema, em celulóide, com cenas externas, com atores, isto é, um filme com todas as suas conseqüências, até na duração, que era de 90 minutos, mas que depois passou na televisão.
 

Folha - Em que medida "As Chaves de Casa" utiliza os sons e rumores em tomada direta?

Amelio - Muitos espectadores são condicionados pela televisão, onde o som é extremamente simulado porque não leva em consideração a dita "sujeira". De fato o espectador diante do televisor é tomado sobretudo pelos rumores da casa que o distraem daqueles do eventual filme.
Aí está um problema que deverei avaliar melhor no futuro, representado pelo fato de que nem todas as projeções se equivalem, porque variam segundo a sala em que ocorrem, na Itália ou em qualquer outro lugar. Até a mixagem tem um resultado diferente se realizada em Roma e depois ouvida em qualquer sala do interior. Afirmo que a "sujeira" é um fato dramaturgicamente importante, mesmo se se perdem alguma palavra, porque constitui um enriquecimento emocional.
 

Folha - Qual é sua relação com a câmera, isto é, com a forma cinematográfica?

Amelio - É fundamental. Isto é, a câmera é o modo de escrever, assim como a caneta representa o conhecimento que se tem do valor de uma palavra quando se escreve um artigo ou um romance. Não é verdade que a câmera seja um instrumento que possa ser usado de qualquer maneira por qualquer pessoa.
Não amo a visibilidade excessiva da câmera, quando se torna o único protagonista do discurso, mas sei como é fundamental saber usá-la com a gramática e a sintaxe. Em suma, não basta a câmera para contar e rodar um filme.
 

Folha - Esteve alguma vez no Brasil? O que pensa do cinema brasileiro recente? De que cineastas viu filmes?

Amelio - Sim, estive no Brasil e espero retornar talvez no próximo ano. Desgraçadamente o cinema brasileiro faz parte daquelas cinematografias que a colonização dos Estados Unidos só nos permite ver pouquíssimo. São as regras brutais do mercado.
Quando jovem, fui honrado com a amizade de diretores como Gustavo Dahl e Glauber Rocha: eu estava em Roma e éramos como irmãos, freqüentando juntos também o famoso Film Studio, no Trastevere, para ver os filmes deles. Era um modo de conhecer o Brasil antes de estar nele.

Tradução de Léo Schlafman.

(© Folha de S. Paulo)


ELOGIO DA DIFERENÇA

DIFERENÇA DE "LINGUAGENS" PODE CAUSAR DESCONFORTO, MAS ESTIGMATIZAÇÃO É O GRANDE PROBLEMA, DIZ ESPECIALISTA

PAULO SAMPAIO
DA REDAÇÃO

   A professora Priscilla Gaspar ficou muito feliz quando soube que sua primeira filha nasceu surda. Planeja até ter outro, igual, assim que Nicolle, seis semanas completadas no último dia 11, estiver crescidinha. A professora quer perpetuar a própria linhagem, gerar uma continuação dela mesma, do marido, de seus pais, irmãos, cunhados, enfim, de cerca de 20 pessoas na família. Quase todo mundo ali é surdo -não "deficiente auditivo", como ela faz questão de frisar, gesticulando na chamada língua brasileira de sinais (libras).

   Priscilla acredita que não se trata de uma "deficiência", mas de uma "diferença". E que a única alteração está na forma de comunicação, "como se fosse outra língua": "Quando todo mundo é surdo em uma família, a comunicação é perfeita. Se você chegar aqui em uma festa de Natal ou aniversário, vai ver", diz.

   Especialistas explicam que a diferença de "linguagem" de fato pode criar desconforto. "O surdo não-oralizado age como se falasse um idioma estrangeiro. Uma criança ouvinte nesse universo, que é diferente dos pais, muitas vezes traz inquietação", explica a professora Regina Célia Mingroni Netto, do departamento de genética e biologia evolutiva do Instituto de Biociências da USP.

   Regina diz que o instituto é muito procurado por casais interessados em fazer o aconselhamento sobre doenças neuromusculares (como distrofias progressivas), retardo mental e surdez.

   "A situação mais comum é o casal normal que traz o filho com retardo mental e quer saber se foi genético ou não (como falta de oxigenação no parto). Nossa tarefa é decifrar; eles escolhem se vão arriscar ou não ter um segundo filho", afirma.

   De acordo com a professora, entre 15% e 25% dos casos de surdez analisados são genéticos.
Priscilla Gaspar conta que seus avós paternos eram primos de primeiro grau, e os filhos deles nasceram surdos. "Já minha mãe ficou surda depois, ninguém sabe por quê. O fato é que fui criada dentro dessa cultura, orientada por quem já era surdo, e o acesso à linguagem foi mais fácil do que à dos ouvintes."

   Aos 27, ela diz que não se submeteu a um aconselhamento genético antes de engravidar porque já havia feito quando tinha cinco anos -e ficado muito feliz em saber que as possibilidades de ter um filho surdo, casando-se com um homem idem, eram enormes. O marido dela, o professor de libras César Oliveira, 25, pensa do mesmo jeito.

   "Sonhei que iria ter um filho surdo. Quando soube que era mesmo, fiquei muito contente", diz ele.

   A professora Regina Migroni atende de quatro a cinco novos casos de aconselhamento genético por semana (ou cerca de 330 famílias em quatro anos de funcionamento): ela afirma que não é atribuição sua demover o casal da idéia de ter filhos.

   "O aconselhamento deve ser neutro; apenas apresentamos o resultado, sem induzir ou sugerir o que fazer aos pais. A decisão é deles", diz.

Orgulho e preconceito

   Eis que, de repente, o repórter ouvinte se sente um pouco "deficiente", de uma certa maneira deslocado, no meio da gesticulante família de Priscilla. Pensa em todos os problemas de auto-estima de que a sociedade ocidental vive se queixando no divã do psicanalista (mesmo os analisandos que escutam, enxergam, falam), nos antidepressivos que se tomam quando não se consegue um marido, uma namorada, um emprego ou mesmo um nariz ou seios perfeitos, e pergunta: não seria egoísmo querer ter um filho surdo, em uma sociedade tão competitiva, ainda por cima em um país onde o acesso à educação é extremamente problemático -mesmo para quem não tem limitações de sentidos?

   Priscilla faz uma expressão de estranhamento, como se a pergunta não tivesse cabimento. Diz que sofreu preconceito, sim, mas jamais teve problema de auto-estima porque sua mãe já a criou preparando-a para enfrentar o mundo. Como, aliás, ela pretende fazer com a pequena Nicolle.

   Simples assim.

   "Eu trocaria a palavra "egoísmo" por "orgulho". Vou prepará-la dentro da identidade surda para casar-se com um surdo, e espero ter netos surdos também", diz ela.

   A primeira escola que Nicolle vai freqüentar, explicam os pais, é especial para surdos. "Ela vai aceitar que é diferente, entre iguais", acham.

   Imagina-se que a educação de um filho surdo, em uma sociedade majoritariamente ouvinte, deva ser mais cara. "Se a escola for particular, é o preço da equivalente para ouvintes", garante Priscilla.

   Ela explica que o surdo só começa a encarecer quando tentam transformá-lo em ouvinte. "Se resolvem colocar um implante em seu ouvido, gastar com fonoaudiólogo para adaptá-lo ao mundo dos ouvintes, aí realmente vai se gastar", diz.

   Parêntese importante: Priscilla diz que um surdo ganha, em média, metade do salário pago a um ouvinte no mercado de trabalho, em profissões como cozinheiro ou digitador.

   A professora Regina conta que costuma ouvir muitas queixas de mães de surdos sem uma boa situação financeira -elas dizem enfrentar filas em todos os serviços de apoio (consulta, ambulatório, tomografia etc.).

   Regina diz que hoje existem associações de apoio a indivíduos com as deficiências mais variadas. Na sua experiência, ela observou que as associações que mais funcionam são aquelas formadas por familiares. "Eles se ajudam muito na divulgação de informações sobre a deficiência e de diagnósticos mais precisos. Os cientistas dão assessoria para esses grupos", diz.

   Priscilla já namorou um rapaz ouvinte, mas lembra-se de que "perdia muito da conversa", pela falta de sintonia na comunicação. Ela conheceu o marido em uma festa junina freqüentada por surdos. Hoje, os dois dão aula no Derdic (Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica-SP). O que mais um surdo pode fazer além de dar aulas ou trabalhar em uma comunidade restrita?

   "Surdo é diferente da maioria dos deficientes. Ele tem capacidade de fazer tudo. Acredito que dá para comparar com o ouvinte analfabeto: ele também não se comunica em muitos âmbitos", acredita Priscilla.

   Em termos práticos, porém, ela sabe que um analfabeto pode ouvir pelo alto-falante do aeroporto que seu avião não sairá mais do portão número 15, por exemplo, mas do número 20. O que não é seu caso.

   "De fato, toda vez que eu chego ao aeroporto, preciso ir ao guichê de embarque avisar que eu sou surda."

   A babá eletrônica toca, quer dizer, acende, e César sobe a escada do sobrado para ver o que a filha quer.

   Como estão em casa apenas Priscilla, César e o pai dela, Roberto, a reportagem pergunta se pode fazer a foto em outro dia, com mais familiares. Ela diz prontamente que sim, claro, e propõe no domingo seguinte, quando reunirá muitos parentes para um almoço.

   "Isso aqui é uma verdadeira surdolândia", diz César, rindo, já de volta à sala.

(© Folha de S. Paulo)

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