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Cena de As Chaves da
Casa. No detalhe, Gianni Amelio |
A PARTIR DA HISTÓRIA DE UM PAI
QUE ABANDONA O FILHO NASCIDO COM DEFICIÊNCIAS
FÍSICAS E MENTAIS, O CINEASTA GIANNI AMELIO CONSTRÓI UMA REFLEXÃO SOBRE
O SIGNIFICADO DO OUTRO NAS RELAÇÕES HUMANAS
MARIA ANDREA MUNCINI
ALDO VILLANI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Gianni Amelio nasceu em 1945 em San Pietro di Magisano, uma pequena
aldeia na estrada que vai de Magisano a Taverna, na Calábria. Depois,
abandonando as estreitas curvas entre as colinas ásperas de Catanzaru à
beira do Sila, ela se distende reta até o mar.
Amelio nasceu em uma família de camponeses pobres, marcada pela
imigração, pelas separações e pelas ausências. Só conheceu o pai,
emigrado para a América do Sul, aos 18 anos. Raízes, sim, mas não
nostalgia, não aquela que com freqüência se torna autocomiseração, diz
Amelio.
Quando decidiu ir para Roma, diz, não foi uma emigração: deixou a
Calábria "por motivos de ordem técnica", porque "Roma é o centro do
cinema" e, se alguém quer fazer cinema, deve ir para onde é feito. Não
pode se contentar em vê-lo das barulhentas poltronas do Politeama como,
quando, ainda jovem estudante, era um espectador "frenético, onívoro".
Abandona os estudos na faculdade de filosofia, entra na RAI e, depois do
documentário "Bertolucci secondo il Cinema" (1976), filma para a
televisão "Il Picolo Archimede" (O Pequeno Arquimedes, 1979), extraído
de um conto de Aldous Huxley. O princípio chega com "Colpire al Cuore"
(1983), drama de gerações com fundo nos anos de chumbo.
O
sucesso e o reconhecimento nacional e internacional chegam com "O Ladrão
de Crianças" ("Il ladro di bambini", 1992), "América - O Sonho de
Chegar" ("Lamerica", 1994) e "Assim É que Se Ria" ("Così ridevano",
1998), a que se seguem seis anos de pausa que se concluem com este "As
Chaves de Casa" (2004), filme inspirado muito livremente no livro
"Nascidos Duas Vezes" (Cia. das Letras), de Giuseppe Pontiggia.
Só
inspirado, porque Amelio, com Stefano Rulli e Sandro Petraglia,
reescreveu profundamente um roteiro (que Pontiggia teve tempo de ler e
aprovar antes da sua morte).
Em
"As Chaves de Casa" se retoma ainda o tema da relação pai-filho já
enfrentado em outros de seus filmes. Desta vez, é central a deficiência
física e extremamente envolvente a atuação de um verdadeiro paraplégico
como Andrea Rossi no papel de Paolo, dois aspectos que constituem o
duplo plano sobre o qual o filme é estruturado.
De
um lado, o drama da deficiência como patologia e diversidade. De outro,
a difícil e contraditória relação do pai com o filho depois de uma
paternidade recusada e a tentativa de uma recuperação tardia, juntamente
com a busca de uma nova afetividade.
Assim, a viagem em direção a novos tratamentos se torna metáfora de um
percurso de aproximação e compreensão, evitando com determinação, porém,
a possível situação do fácil sentimentalismo. Diante de um pai que com
esforço decide acertar as contas com sua consciência, o espectador é
levado a se aproximar com discrição e sem falsidade daquele labirinto
moral e afetivo que é também o de uma sociedade que talvez preferisse
não ver e não saber.
Na
entrevista abaixo, Amelio também fala da relação com o Brasil e por que
escolheu uma canção interpretada por Virgínia Rodrigues para pontuar seu
filme.
Folha - Gostaria de falar um pouco
sobre a canção de Virgínia Rodrigues que o sr. inseriu em "As Chaves de
Casa", e sua relação com o Brasil.
Gianni Amelio - Digamos que
este meu amor pelo Brasil é de longa data e tinha necessidade de ser
reavivado. Quando eu tinha uns 25 anos, escutei uma música chamada
"Acrílico", de Caetano Veloso [em "Caetano Veloso", de 1969], e isso foi
tão importante quanto, como se diz, a leitura dos clássicos russos ou
ter assistido a um filme de Bergman ou a um filme do neo-realismo.
Quero dizer que considero o fato de ter escutado aquele disco uma das
experiências culturais mais profundas da minha vida.
Já a canção que incluí no filme, de Virgínia Rodrigues, fala de uma
rapariga, muito bela, mas não sei de qual idade, e eu escutava sem
conhecê-la, sem saber qual era o sentido das palavras, talvez um canto
religioso antigo, porque era difícil entender também a tradução inglesa.
Um dia tornei a escutar a canção enquanto escrevia o roteiro do filme,
em casa, num canal de televisão via satélite, como pano de fundo de um
desfile de moda. Pois bem, durante semanas permaneci sintonizado naquele
canal, com a esperança de tornar a escutar aquela canção, e aconteceu
que realmente a transmitiram e, por sorte, a gravei.
Pense como se sente um pai
diante de um filho que não poderá vingá-lo porque é já um ser
condenado
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Depois parti em busca do título da canção
e de Virgínia Rodrigues, a cantora, indo a todas as lojas de discos. Mas
não o consegui até que a companheira de meu músico conheceu em Londres o
produtor de Rodrigues. Assinei logo um contrato e pude inserir a canção
no meu filme, onde é possível escutá-la duas vezes, como fundo dos
créditos no início e no fim e como fundo às palavras que pai e filho
trocam, no hotel.
Sou apaixonadíssimo por esse disco, que se intitula "Nós" e é o único
disco de Virgínia Rodrigues conhecido na Itália. A canção se chama "O
Deus do Fogo e da Justiça".
Folha - Em "O Conformista", de
Bertolucci, há um trem que corre com imagens de dentro e de fora como se
fossem o interior e o exterior dos próprios personagens. Também no seu
filme há um trem que corre, o que me fez me perguntar se isso não tinha
algum significado...
Amelio - Em "O
Conformista", as imagens são do interior do trem em direção ao exterior,
e Bertolucci a realiza com dissolvência sobre transparências, que são
projeções no estúdio de cenas filmadas separadamente no exterior, para
usá-las em cenas externas que devem, por necessidade, ser filmadas em
estúdio.
Por exemplo: uma cena no aposento em que estamos, cuja janela dá para um
pátio, pode ser filmada no estúdio cinematográfico em cuja janela
podemos colocar as imagens que queremos, como se o aposento estivesse em
outro lugar.
No meu filme acontece o contrário: são os trens que estão em movimento
do lado de fora do quarto do hotel. Você me pergunta qual é o
significado daqueles trens em movimento: é apenas o sentido da
precariedade da situação em que os personagens se encontram, porque um
quarto de hotel é a coisa mais precária que existe, um ambiente que
habitualmente se deixa e depois se esquece, talvez por toda a vida.
Sobretudo, precariedade do vínculo sentimental por parte do pai, que não
sabe até que ponto recuperará o amor do filho, enquanto o filho não
compreende absolutamente que o pai está ali para que nasça um afeto por
ele. Eu interpretava como se os dois estivessem numa espécie de tapete
voador, e, então, os trens urbanos vistos passando no exterior deviam
dar o sentido de instabilidade, de alguém que não se sente firme em sua
própria casa, entre as coisas habituais que pode considerar como apoios,
sustentação psicológica.
Muitas pessoas me perguntaram por que ambientei o filme fora da Itália.
Respondo assim: se o tivesse ambientado na Itália, o protagonista
poderia resolver todos os seus conflitos, consigo próprio e com o filho,
alojando o filho com algum parente ou uma amiga, uma conhecida.
Em certo sentido, quis colocar cada um dos dois com duas deficiências
diferentes: uma, a do filho; outra, a do pai, que é a deficiência de não
poder se mover com liberdade em uma cidade que desconhece, da qual
ignora até o idioma, o alemão, ali falado, que ignora mesmo o inglês por
causa de sua cultura modesta; e tudo isso o torna, de algum modo,
deficiente.
Folha - Vi seu filme três vezes e
me agradou pela música, a recitação etc., mas o que eu buscava
compreender era por que não chorava.
Amelio - A coisa poderá
parecer exagerada a você e talvez eu seja presunçoso, mas eu pensava em
certas coisas que aconteciam só a Anna Magnani, por exemplo em
"Belíssima", de Visconti, um filme que toca no tema dilacerante de uma
mãe que vê a filha mercadejada, ridicularizada. Naquele filme, Magnani
conseguia comunicar a força que um ser humano tem diante da vida, que
arregaça as mangas para ir adiante apesar de tudo, que não deve e não
quer chorar sobre o leite derramado. Ela era capaz de urrar, de gritar
de raiva, mas não de choramingar.
No dialeto romano em que deixei o rapaz falar e no tom romano do pai, vi
uma espécie de força plebéia, aquela em que, quando a casa está
desmoronando, você se determina em primeiro lugar a se pôr a salvo e,
depois, a recuperar os tijolos para reconstruí-la. Andrea não é uma
pessoa complexada porque seus pais foram inteligentes ao não fazê-lo
crescer lamentando a invalidez.
Procurar Andrea queria dizer procurar um rapaz que encarnasse essa minha
vontade de não chorar sobre o leite derramado. Não foi fácil, porque
diante desta doença sempre se sofre muito.
Já o pai é alguém que, se tivesse tido um filho normal, não seria um
homem forte.
Folha - Também a imagem quase
materna de Charlotte Rampling o põe diante da realidade...
Amelio - De fato é uma
inversão de papéis, se quisermos. Seja diante da doença ou da vida, é
mais viril a reação da personagem de Rampling do que a do personagem de
Rossi Stuart. Ele deve aprender a alimentar seu filho, a ministrar-lhe o
remédio certo no momento certo, a lavá-lo e assim por diante. Além do
fator invalidez, que tampouco é desenvolvido no filme, penso que o
verdadeiro tema seja o da incapacidade, masculina, de enfrentar a
realidade de modo adulto, consciente.
Folha - Mas, para dizer tudo isso,
era preciso recorrer à deficiência?
Amelio - Sim e não, desde
que se enfrente uma narrativa de pontos de vista diferentes. Em vez de
contar a história de um pai que sai de casa porque se apaixona por outra
mulher, abandonando até seu filho, quis contar algo mais inquietante. Se
ele tivesse abandonado o filho por ter se apaixonado por outra pessoa,
teria para si próprio a justificação do amor que o leva para fora da
família.
Mas, aqui, o que o leva para longe da família é o medo de não poder
aceitar um filho naquelas condições. Isto é, continuo a afirmar que os
homens fazem filhos por vingança.
Explico-me: desejo que meu filho me compense de tudo aquilo que a vida
me tirou ou não me deu. Tive a vida que tive, mas, se concebo um filho,
desejo ardentemente que ele seja mais rico, mais afortunado, mais
inteligente, mais belo, sobretudo mais hábil do que eu ao enfrentar
aquilo que eu talvez não tenha sido capaz de enfrentar ou, então,
enfrentar o destino adverso, que me deu só desilusões... Pense então
como se sente um pai diante de um filho que não poderá vingá-lo porque é
já um ser condenado.
Nesse ponto se somam duas desgraças e dois rancores: o rancor da vida e
o rancor de um destino sem possibilidade de resgate, diante do qual só
resta a fuga. O pai fala com freqüência de Francesco, o filho belo e
mais novo, de quem mostra as fotografias como se estivesse vingando
tanto a si mesmo como o irmão maior e desafortunado.
Folha - A escolha de Berlim e,
depois, do norte norueguês -em suma, de um clima frio que parece se
enregelar progressivamente- tem um significado metafórico, por
contraste, com o desenvolvimento da relação entre pai e filho?
Amelio - A escolha de
Berlim, em particular, deveu-se a dois motivos. O primeiro é que ela não
é a primeira cidade em que se pensa numa chave turística: se você é
italiano, pensa primeiro em Paris, em Londres ou em Barcelona ou em
Madri que talvez convidem também pelo idioma, enquanto que a língua
alemã para nós, latinos, é mais desagradável, com um som que
erroneamente definimos como duro, forte, violento.
Andrea não tem nenhuma percepção disso, mas o pai tem, quando assiste às
ordens que a fisioterapeuta dá a Paolo durante os exercícios, que
parecem evocar-lhe de alguma maneira os lager nazistas. Escolhi Berlim
não porque penso que o nazismo ainda esteja vivo na Alemanha, mas
porque, entre aqueles da minha geração do imediato pós-guerra, continua
presente a imagem violenta e dura da tragédia do Holocausto e a
convicção de que um rapaz como Paolo, naquela época, não teria
sobrevivido nem sequer uma hora.
Por uma reviravolta também positiva da história, Berlim é hoje a
vanguarda desse tipo de terapia. Não filmamos num hospital de verdade,
mas reconstruímos tudo em outro lugar. Tivemos como consultores médicos
que cuidam verdadeiramente de tetraplégicos e de paralisias espásticas.
Alguns médicos se ocuparam realmente de Andrea, prescrevendo-lhe
cuidados que ninguém na Itália lhe dera até então e que, hoje, continua
a seguir.
E, depois, a Noruega. Queria uma abertura com paisagem que fosse
distante da luz quente do Mediterrâneo, isto é, uma luz clara, porém
muito fria, mesmo para o final que desejava, quase de ficção científica,
uma paisagem marciana, de planaltos, com um céu de tal cor que só depois
se compreende que é verão, porque os dois estão vestidos com roupas
estivais. Ao mesmo tempo há também neve aqui e ali, há montanhas e
lagos, mas não se vêem seres humanos em volta.
Folha - Naquele momento o pai
estava recuperando sua paternidade...
Amelio - Talvez sim. Eu
queria que aquela paisagem não se desenrolasse em público, mas que fosse
algo que os atingisse de maneira total, tanto que, na cena final, eles
se fundem com a pedra onde estão sentados, com as montanhas.
Folha - Até que ponto o fato de
Andrea ser realmente portador de deficiência condicionou o trabalho no
set? De que maneira o roteiro foi adaptado às suas exigências pessoais?
Antes ou durante a filmagem?
Amelio - Parece-me que a
substância de sua pergunta, de maneira direta, pode ser esta: "Por que,
para interpretar o personagem de Paolo, se escolheu um rapaz realmente
portador de deficiência?". Direi que muitas pessoas se escandalizaram
com essa escolha. Pergunta semelhante me foi feita numa entrevista
coletiva no Festival de Veneza [em 2004], e alguém a repetiu na resenha
do filme, com uma ponta clara de preconceito: como se um rapaz portador
de deficiência não pudesse, por isso, trabalhar como ator.
"Por que, para interpretar o
personagem de Paolo, se escolheu um rapaz realmente portador de
deficiência?", perguntaram
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Se fosse assim, seria absurdo e imoral.
Andrea interpretou o roteiro e ao mesmo tempo contribuiu com uma série
de coisas que não previ. Quando filmei "O Ladrão de Crianças",
improvisei muitas coisas sobre eles porque eram capazes de agir por
conta própria se lhes fosse explicado qual era o tema da cena. Com
Andrea não era possível, porque ele tem (não sei qual seja a definição
exata, do ponto de vista da medicina) uma lesão cerebral que o torna
semelhante a uma criança de quatro, cinco anos, em vez de um rapaz de
17.
Isso diz respeito ao desenvolvimento da inteligência, à coordenação dos
pensamentos, à lógica de ações e discursos. Se eu o tivesse deixado
livre, seria como se ele andasse solto em temas e coisas que poderiam
não ter qualquer relação com a história do filme.
Folha - Ele deveria estar sempre
presente...
Amelio - Sim, porque era
muito consciente, sobretudo porque eu estava ao lado, levando-o pela
mão. Na vida, ele tem a sorte de contar com a presença de uma família
extraordinária: o pai e a mãe são duas pessoas de muita inteligência,
que o educaram de maneira que não tivesse complexos. A mãe me disse que
ele a fez compreender o que significa a palavra "vergonha".
Pus isso no filme: há uma cena em que Rampling diz a Rossi Stuart:
"Compreendi que você era o pai do rapaz pela maneira como olhava ao
redor". E depois: "Disse para mim: este homem se envergonha".
Folha - No começo de sua carreira,
o sr. trabalhou muito para a televisão. Em que medida foi uma escolha?
Amelio - Mais do que
escolha, foi uma necessidade, diante de um cinema que nos anos 70
parecia sucumbir diante do desenvolvimento da televisão. Tive
experiência apenas como assistente de direção e tive de aceitar fazer
televisão por falta de opção. Foram necessários dez anos para poder
rodar meu primeiro filme, "Colpire al Cuore", ambientado em Milão,
quando deveria ser em Turim.
A passagem do trabalho televisivo para o trabalho de cinema é
representado por "Il Piccolo Archimede", filme rodado com máquina de
cinema, em celulóide, com cenas externas, com atores, isto é, um filme
com todas as suas conseqüências, até na duração, que era de 90 minutos,
mas que depois passou na televisão.
Folha - Em que medida "As Chaves de
Casa" utiliza os sons e rumores em tomada direta?
Amelio - Muitos
espectadores são condicionados pela televisão, onde o som é extremamente
simulado porque não leva em consideração a dita "sujeira". De fato o
espectador diante do televisor é tomado sobretudo pelos rumores da casa
que o distraem daqueles do eventual filme.
Aí está um problema que deverei avaliar melhor no futuro, representado
pelo fato de que nem todas as projeções se equivalem, porque variam
segundo a sala em que ocorrem, na Itália ou em qualquer outro lugar. Até
a mixagem tem um resultado diferente se realizada em Roma e depois
ouvida em qualquer sala do interior. Afirmo que a "sujeira" é um fato
dramaturgicamente importante, mesmo se se perdem alguma palavra, porque
constitui um enriquecimento emocional.
Folha - Qual é sua relação com a
câmera, isto é, com a forma cinematográfica?
Amelio - É fundamental.
Isto é, a câmera é o modo de escrever, assim como a caneta representa o
conhecimento que se tem do valor de uma palavra quando se escreve um
artigo ou um romance. Não é verdade que a câmera seja um instrumento que
possa ser usado de qualquer maneira por qualquer pessoa.
Não amo a visibilidade excessiva da câmera, quando se torna o único
protagonista do discurso, mas sei como é fundamental saber usá-la com a
gramática e a sintaxe. Em suma, não basta a câmera para contar e rodar
um filme.
Folha - Esteve alguma vez no
Brasil? O que pensa do cinema brasileiro recente? De que cineastas viu
filmes?
Amelio - Sim, estive no
Brasil e espero retornar talvez no próximo ano. Desgraçadamente o cinema
brasileiro faz parte daquelas cinematografias que a colonização dos
Estados Unidos só nos permite ver pouquíssimo. São as regras brutais do
mercado.
Quando jovem, fui honrado com a amizade de diretores como Gustavo Dahl e
Glauber Rocha: eu estava em Roma e éramos como irmãos, freqüentando
juntos também o famoso Film Studio, no Trastevere, para ver os filmes
deles. Era um modo de conhecer o Brasil antes de estar nele.
Tradução de Léo Schlafman.
(© Folha
de S. Paulo)
ELOGIO DA DIFERENÇA
DIFERENÇA DE "LINGUAGENS" PODE
CAUSAR DESCONFORTO, MAS ESTIGMATIZAÇÃO É O GRANDE PROBLEMA, DIZ
ESPECIALISTA
PAULO SAMPAIO
DA REDAÇÃO
A
professora Priscilla Gaspar ficou muito feliz quando soube que sua
primeira filha nasceu surda. Planeja até ter outro, igual, assim que
Nicolle, seis semanas completadas no último dia 11, estiver crescidinha.
A professora quer perpetuar a própria linhagem, gerar uma continuação
dela mesma, do marido, de seus pais, irmãos, cunhados, enfim, de cerca
de 20 pessoas na família. Quase todo mundo ali é surdo -não "deficiente
auditivo", como ela faz questão de frisar, gesticulando na chamada
língua brasileira de sinais (libras).
Priscilla acredita que não se trata de uma "deficiência", mas de uma
"diferença". E que a única alteração está na forma de comunicação, "como
se fosse outra língua": "Quando todo mundo é surdo em uma família, a
comunicação é perfeita. Se você chegar aqui em uma festa de Natal ou
aniversário, vai ver", diz.
Especialistas explicam que a diferença de "linguagem" de fato pode criar
desconforto. "O surdo não-oralizado age como se falasse um idioma
estrangeiro. Uma criança ouvinte nesse universo, que é diferente dos
pais, muitas vezes traz inquietação", explica a professora Regina Célia
Mingroni Netto, do departamento de genética e biologia evolutiva do
Instituto de Biociências da USP.
Regina diz que o instituto é muito procurado por casais interessados em
fazer o aconselhamento sobre doenças neuromusculares (como distrofias
progressivas), retardo mental e surdez.
"A
situação mais comum é o casal normal que traz o filho com retardo mental
e quer saber se foi genético ou não (como falta de oxigenação no parto).
Nossa tarefa é decifrar; eles escolhem se vão arriscar ou não ter um
segundo filho", afirma.
De
acordo com a professora, entre 15% e 25% dos casos de surdez analisados
são genéticos.
Priscilla Gaspar conta que seus avós paternos eram primos de primeiro
grau, e os filhos deles nasceram surdos. "Já minha mãe ficou surda
depois, ninguém sabe por quê. O fato é que fui criada dentro dessa
cultura, orientada por quem já era surdo, e o acesso à linguagem foi
mais fácil do que à dos ouvintes."
Aos 27, ela diz que não se submeteu a um aconselhamento genético antes
de engravidar porque já havia feito quando tinha cinco anos -e ficado
muito feliz em saber que as possibilidades de ter um filho surdo,
casando-se com um homem idem, eram enormes. O marido dela, o professor
de libras César Oliveira, 25, pensa do mesmo jeito.
"Sonhei que iria ter um filho surdo. Quando soube que era mesmo, fiquei
muito contente", diz ele.
A
professora Regina Migroni atende de quatro a cinco novos casos de
aconselhamento genético por semana (ou cerca de 330 famílias em quatro
anos de funcionamento): ela afirma que não é atribuição sua demover o
casal da idéia de ter filhos.
"O
aconselhamento deve ser neutro; apenas apresentamos o resultado, sem
induzir ou sugerir o que fazer aos pais. A decisão é deles", diz.
Orgulho e preconceito
Eis que, de repente, o repórter ouvinte se sente um pouco "deficiente",
de uma certa maneira deslocado, no meio da gesticulante família de
Priscilla. Pensa em todos os problemas de auto-estima de que a sociedade
ocidental vive se queixando no divã do psicanalista (mesmo os
analisandos que escutam, enxergam, falam), nos antidepressivos que se
tomam quando não se consegue um marido, uma namorada, um emprego ou
mesmo um nariz ou seios perfeitos, e pergunta: não seria egoísmo querer
ter um filho surdo, em uma sociedade tão competitiva, ainda por cima em
um país onde o acesso à educação é extremamente problemático -mesmo para
quem não tem limitações de sentidos?
Priscilla faz uma expressão de estranhamento, como se a pergunta não
tivesse cabimento. Diz que sofreu preconceito, sim, mas jamais teve
problema de auto-estima porque sua mãe já a criou preparando-a para
enfrentar o mundo. Como, aliás, ela pretende fazer com a pequena
Nicolle.
Simples assim.
"Eu trocaria a palavra "egoísmo" por "orgulho". Vou prepará-la dentro da
identidade surda para casar-se com um surdo, e espero ter netos surdos
também", diz ela.
A
primeira escola que Nicolle vai freqüentar, explicam os pais, é especial
para surdos. "Ela vai aceitar que é diferente, entre iguais", acham.
Imagina-se que a educação de um filho surdo, em uma sociedade
majoritariamente ouvinte, deva ser mais cara. "Se a escola for
particular, é o preço da equivalente para ouvintes", garante Priscilla.
Ela explica que o surdo só começa a encarecer quando tentam
transformá-lo em ouvinte. "Se resolvem colocar um implante em seu
ouvido, gastar com fonoaudiólogo para adaptá-lo ao mundo dos ouvintes,
aí realmente vai se gastar", diz.
Parêntese importante: Priscilla diz que um surdo ganha, em média, metade
do salário pago a um ouvinte no mercado de trabalho, em profissões como
cozinheiro ou digitador.
A
professora Regina conta que costuma ouvir muitas queixas de mães de
surdos sem uma boa situação financeira -elas dizem enfrentar filas em
todos os serviços de apoio (consulta, ambulatório, tomografia etc.).
Regina diz que hoje existem associações de apoio a indivíduos com as
deficiências mais variadas. Na sua experiência, ela observou que as
associações que mais funcionam são aquelas formadas por familiares.
"Eles se ajudam muito na divulgação de informações sobre a deficiência e
de diagnósticos mais precisos. Os cientistas dão assessoria para esses
grupos", diz.
Priscilla já namorou um rapaz ouvinte, mas lembra-se de que "perdia
muito da conversa", pela falta de sintonia na comunicação. Ela conheceu
o marido em uma festa junina freqüentada por surdos. Hoje, os dois dão
aula no Derdic (Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da
Comunicação da Pontifícia Universidade Católica-SP). O que mais um surdo
pode fazer além de dar aulas ou trabalhar em uma comunidade restrita?
"Surdo é diferente da maioria dos deficientes. Ele tem capacidade de
fazer tudo. Acredito que dá para comparar com o ouvinte analfabeto: ele
também não se comunica em muitos âmbitos", acredita Priscilla.
Em
termos práticos, porém, ela sabe que um analfabeto pode ouvir pelo
alto-falante do aeroporto que seu avião não sairá mais do portão número
15, por exemplo, mas do número 20. O que não é seu caso.
"De fato, toda vez que eu chego ao aeroporto, preciso ir ao guichê de
embarque avisar que eu sou surda."
A
babá eletrônica toca, quer dizer, acende, e César sobe a escada do
sobrado para ver o que a filha quer.
Como estão em casa apenas Priscilla, César e o pai dela, Roberto, a
reportagem pergunta se pode fazer a foto em outro dia, com mais
familiares. Ela diz prontamente que sim, claro, e propõe no domingo
seguinte, quando reunirá muitos parentes para um almoço.
"Isso aqui é uma verdadeira surdolândia", diz César, rindo, já de volta
à sala.
(© Folha
de S. Paulo) |