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Umberto Eco rememora a vida sob o fascismo


 

Anne Selders

Umberto Eco

Italiano lança o romance "A Misteriosa Chama da Rainha Loana"

Catherine Bédarida
Em Paris

   Um professor na Universidade de Bolonha, na Itália, especialista em semiótica, Umberto Eco começou a escrever romances na idade de 48 anos. O primeiro, "O Nome da Rosa" (editado pela primeira vez em 1980), conheceu um enorme sucesso internacional. Depois, vieram "O Pêndulo de Foucault" [cuja trama aborda o sincretismo religioso e cultural do Brasil], "A Ilha do Dia Anterior" e "Baudolino".

   Agora, o escritor publica "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", um romance ilustrado, que é também uma reflexão sobre as imagens da infância.

   A seguir, leia os principais trechos da entrevista que Umberto Eco concedeu ao Le Monde, na qual ele também explica o sucesso de romances que abordam o universo místico, como "O Código da Vinci" e "O Alquimista".

Le Monde - O sr. já disse em várias oportunidades que cada um dos seus romances constitui um novo experimento. Desta vez, o sr. insere uma grande quantidade de imagens que fazem parte da narrativa. Por quê?

Umberto Eco -
Neste livro, eu retorno ao meu passado e ao da minha geração, que cresceu durante o regime fascista. Esta memória baseia-se em imagens, em músicas, em objetos, e não apenas em palavras.

Para constituir a matéria-prima do meu texto, eu reuni uma documentação sobre os anos 1930-40. Eu já possuía na minha casa uma importante coleção de livros, de capas de discos, de caixas... Eu a completei pesquisando em lojas de bricabraque e em sebos, procurando os objetos que faltavam para o meu projeto. Na Internet, eu consegui reconstituir toda a minha coleção de selos.

Os livros sempre foram ilustrados, exceto em nossa época. No século 19, autores tais como Jules Verne intervinham, eles mesmos, na pesquisa das imagens que ilustrariam os seus livros. Seria possível temer, atualmente, que a ilustração substitua a linguagem e a sua potência.

Mas eu tomei cuidado para que as imagens nunca tomem o lugar de uma descrição verbal. Elas servem para evidenciar uma prova, para mostrar que eu não estou exagerando quando descrevo a propaganda fascista, por exemplo.

Elas têm também uma "função de etc.": eu mostro a capa de um livro antigo, e a memória dos leitores, imediatamente estimulada por esta referência, entra em expansão.

Le Monde - Qual foi o impacto da literatura de juventude, com o seu universo maravilhoso, sobre a formação do imaginário desta geração?

Umberto Eco -
Ao organizar a matéria-prima do livro, eu redescobri a situação esquizofrênica na qual a Itália se encontrava na época. De um lado, aturava-se a educação oficial da ditadura --eu reencontrei essas canções e esses livros que falam da glória, do heroísmo.

De outro lado, existe esta dupla influência cotidiana, por intermédio do rádio e da música em voga, que celebram um mundo provincial e pequeno-burguês, e por intermédio do cinema, que, com as histórias em quadrinhos e os romances policiais, chega da América.

Essas histórias, banais nos Estados Unidos, adquiriam no nosso país uma dimensão política e ideológica. Mandrake, o herói de histórias em quadrinhos, trajava um fraque e não utilizava armas. Isso nada tinha a ver com o herói fascista carregando uma metralhadora a tiracolo que nos era proposto como ideal.

Neste ambiente militarista, os personagens de álbuns que trajavam terno e chapéu-coco, capazes de resolver os problemas mais complicados com um gesto elegante, já constituíam uma provocação.

Le Monde - O seu romance se desenrola no século 20. O sr. sentiu a necessidade de retornar à história recente?

Umberto Eco -
Eu tinha acima de tudo a necessidade de contar a minha infância. A Itália nunca se cansou, desde o final da guerra, de reconstituir o seu passado, de fazer o seu exame de consciência, diferentemente da França.

Atualmente, em função da presença de antigos fascistas no governo, estamos assistindo a um revisionismo que procura reinterpretar o passado fascista a partir de um outro ponto de vista: alguns andaram insistindo nos crimes que foram cometidos pelos guerrilheiros antifascistas, os quais já haviam sido apurados e divulgados pelos historiadores.

Eu tento estabelecer relações entre a grande história e a pequena história. Na vida de uma criança, estas duas coisas são completamente conectadas: assim como a sopa e a carne, elas são servidas juntas à mesa.

Não existe nenhuma hierarquia entre os artigos de jornais, as histórias em quadrinhos e as canções populares de época. Esta oscilação está no cerne do livro.

Le Monde - As diferentes formas de esoterismo costumam aparecer com freqüência nos seus livros, nos quais elas são manejadas com erudição e humor. Nos últimos anos, foram publicados best-sellers tais como o "Código Da Vinci", de Dan Brown, ou "O Alquimista", de Paulo Coelho. Qual avaliação o sr. faz destes livros?

Umberto Eco -
Em "O Pêndulo de Foucault" (1987), eu havia inserido um bom número de ingredientes esotéricos, que podem ser encontrados no "Código Da Vinci". Os meus personagens, ao elaborarem os seus projetos, levam em conta a importância do Graal, por exemplo.

Eu quis fazer uma representação grotesca daquilo que eu via em volta de mim, de uma tendência da qual eu previa o crescimento. Era fácil fazer uma profecia como esta. Ao pesquisar para escrever "O Pêndulo de Foucault", eu esvaziei todas as livrarias que já se especializavam nessa "gororoba cultural"! Dan Brown copia livros que podiam ser encontrados trinta anos atrás nos sebos da Rua da Huchette em Paris.

O sucesso pode ser explicado pelo fato de que os autores desses best-sellers levam tudo isso a sério, e ainda pelo fato de que as pessoas são sedentas por mistérios. Em "O Pêndulo de Foucault", eu cito a frase de G. K. Chesterton: "Quando os homens não acreditam mais em Deus, isso não se deve ao fato de eles não acreditarem em mais nada, e sim ao fato de eles acreditarem em tudo".

Eu sempre tive um grande fascínio pelos ritos sincréticos brasileiros.

Eu aposto que eles não vão demorar a penetrar na Europa. Até mesmo a Igreja Católica está começando a demonstrar certa simpatia por todas essas realidades "new age". Ela acreditava que ela precisaria combater o comunismo ou o materialismo, mas ela descobre agora que precisa enfrentar o crescimento desta necessidade de mistério, de complô, de sobrenatural.

Ao escrever "O Pêndulo de Foucault", eu achava estar acertando as contas com este fenômeno. Ao contrário, eu lhe dei apoio, oferecendo, possivelmente, matéria para inspiração que beneficiou outros autores.

Le Monde - Quais eram os sinais que lhe permitiram detectar a existência desta necessidade?

Umberto Eco -
Bastava entrar numa livraria. Durante os anos 70, os setores dedicados ao marxismo e aos pensamentos revolucionários começaram a ceder lugar para departamentos dedicados ao orientalismo, aos novos cultos, à "new age".

A psicologia do complô dominou os séculos 19 e 20, até o anti-semitismo nazista. A metade dos grandes dignitários nazistas era ligada a confrarias ocultistas. Existem vínculos que vão e voltam ao longo da história dos dois últimos séculos, que eu tentei descrever e explicar, simplesmente porque eu estava fascinado pelo fenômeno.

Eu coleciono os livros antigos. Eu venho acumulando todo esse material ocultista e tudo isso me fascina. Mas é possível ter uma paixão pela vida das rãs sem querer se tornar por sua vez uma rã! Eu coleciono livros que não dizem a verdade --contos, fábulas, mistérios-- e, ao mesmo tempo, eu sei que eles não dizem a verdade. Eu não acredito nem nas fadas, nem nos mágicos.

A idéia segundo a qual tudo já está acertado por meio de um complô secreto tem lá o seu charme, evidentemente. Ela liberta as pessoas do sentimento de culpa pessoal, uma vez que é alguém, na sombra, que está agindo. Ela liberta as pessoas da responsabilidade frente aos males do mundo.

Le Monde - O personagem do seu novo romance dedica toda a sua energia ao objetivo de recuperar a sua lucidez. Em várias oportunidades, o sr. já apelou os intelectuais italianos a exercerem a sua lucidez e as suas responsabilidades. O sr. foi ouvido?

Umberto Eco -
A vigilância dos intelectuais não diminuiu. Todo dia, ocorrem intervenções contra o regime de Silvio Berlusconi. Contudo, por mais que eles denunciem os conflitos de interesses, as leis feitas sob medida, as modificações da Constituição, a metade do país, aquela que vota nele, não está nem aí!

Ela pouco se incomoda com o fato de ver o homem o mais rico da Itália concentrar todos os poderes em suas mãos. Ser dono dos meios de comunicação permite assentar um poder soporífico.

Le Monde - O sr. abordou com freqüência a questão da imigração e da tolerância. Será que os valores de hospitalidade ainda têm algum espaço na Europa tal como ela está sendo construída?

Umberto Eco -
Dentro de trinta anos, haverá uma mestiçagem muito profunda. A Europa será um continente colorido e ela não poderá se fechar dentro de si mesma. Esta evolução, portadora de instabilidade, provocará sem dúvida reações sangrentas.

As migrações das populações do norte no Império Romano provocaram massacres. Mas a mestiçagem completou-se; se isso não tivesse acontecido, a França, a Itália, a Alemanha não existiriam.

Quais serão as formas desta mestiçagem? A Europa encontrará as suas próprias formas. Ou então, poderá ser o modelo americano --uma coexistência mais ou menos pacífica das comunidades, mantidas juntas por uma película americana superficial, constituída por uma ideologia do bem-estar, do respeito pelo individualismo. De qualquer forma, será preciso haver uma estratégia do diálogo.

Le Monde - Por exemplo?

Umberto Eco -
O debate francês em torno do véu muçulmano na escola é uma estratégia. A decisão francesa apresenta o risco de produzir ainda mais divisões. Se essas garotas fossem admitidas tranqüilamente nas escolas, algumas delas conservariam o seu véu, enquanto outras o tirariam. A situação talvez pudesse se tornar mais maleável, em vez de ficar mais tensa.

Le Monde - Quais são os seus projetos?

Umberto Eco -
Eu tenho um ou dois livros de ensaios para terminar. E preciso de tempo antes de retomar um eventual projeto de romance. Mas talvez eu venha a morrer amanhã. Ou, quem sabe, posso decidir, eu também, levar todas essas histórias ocultas muito a sério e escrever o meu próprio "Código Da Vinci"...

Tradução: Jean-Yves de Neufville

(© UOL/Le Monde)

Para saber mais sobre este assunto (arquivo ItaliaOggi):

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