National Gallery de
Londres reconstitui últimos anos de sua obra
Philippe Dagen
Em Londres, Inglaterra
Existe na pintura de Caravaggio
(Michelangelo Risi, 1571-1610), uma particularidade observa apenas nas
obras dos maiores artistas: ela faz esquecer que ela é pintura.
Ela
exerce um impacto através dos olhos, mas o seu efeito se repercute mais
para baixo, na garganta ou na barriga, de maneira incrivelmente
repentina. A observação dos meios e a sua análise virão mais tarde,
quando a comoção inicial tiver diminuído. Mas esta primeira impressão
demora muito para se esvair, e, se você retornar para contemplar um
quadro após tê-lo deixado por um momento, tudo recomeça da mesma forma
que a primeira vez.
É difícil tentar imaginar qual
era a emoção que esta arte produzia quando o seu criador ainda vivia,
uma vez que ela se opunha frontalmente a tudo o que havia sido feito até
então, a tudo o que acabara de estar na moda ao longo de décadas e
deixara de sê-lo por causa dele, tudo por causa desse escândalo sem
concessão: os seus quadros.
Vide o quadro intitulado "A
Renegação de São Pedro", uma das suas derradeiras obras. O tema que ele
aborda é o medo, a mentira, a traição, a vergonha. Pedro está à direita.
Ele finge não ser um discípulo de Jesus. Para melhor enganar o soldado
que o interroga, ele torce as mãos e aponta os seus dedos para o seu
peito. Mas as dobras da sua testa, o olho esquerdo e a posição
ligeiramente curvada da cabeça denunciam a sua dor: ele já está
considerando com horror a sua traição. O soldado olha para ele,
indeciso, e tenta interpretar a sua expressão.
Entre os dois, Caravaggio colocou
uma jovem mulher. Ela está apontando para o acusado com um dedo e
olhando para o soldado. Estará ela denunciando Pedro? Ou será que ela
está confortando deliberadamente as denegações do santo? Será ela a sua
inimiga ou o seu apoio? A impassibilidade do seu rosto e dos seus olhos
não permite tirar qualquer conclusão. Mas, será mesmo necessário tirar
essa conclusão? O quadro como um todo é feito de sentimentos
contraditórios, de dúvidas, de reviravoltas possíveis.
Segundo os evangelhos, o fato
mais importante ocorrerá um pouco mais tarde: Pedro arrepender-se-á da
sua traição. O quadro sugere a possibilidade deste arrependimento, mas
não o mostra. Ele descreve apenas o que parece impossível de ser
pintado, o crescimento do remorso, a confusão dos sentimentos.
De que maneira? Encenando três
personagens das quais só se vê metade do corpo, em meio à penumbra de um
local desconhecido, que estão trajando panos drapejados. O capacete --um
modelo italiano do início do Renascimento-- e uma armadura preta
diferenciam o soldado. A luz é derramada sobre a testa da mulher e a de
Pedro, e sobre as mãos dobradas e retorcidas deste último.
Neste quadro, Caravaggio realiza
duas façanhas de uma só vez: ele trata de um episódio que, de maneira
geral, ninguém chega a abordar, uma vez que a Igreja prefere aquele do
arrependimento, muito mais edificante. Além disso, ele o aborda como se
fosse uma cena como qualquer outra de interrogatório e de mentira. Será
que esta cena ocorre em Jerusalém? Em Messina? Em todo lugar onde homens
são obrigados a se renegar para tentar se salvar.
Hoje, seria difícil transpor uma
cena como esta. É o que faz Caravaggio, ao dar destaque para o capacete
e ao abandonar todo acessório pitoresco. Esta banalização é a condição
da universalidade da obra.
Nenhuma pompa, nenhum artifício
complicado produziriam um efeito tão forte como faz esta simplicidade
rigorosa. Ora, justamente, desde o início do século 16, o maneirismo vem
se embriagando com pompa e artifícios. Ele complica, suaviza, embaralha,
transforma tudo em alegoria. Caravaggio põe um fim brutal a esses
exercícios de estilo. Ele reinventa a pintura.
E em nenhum momento ele praticou
isso com uma audácia e uma autoridade tão imponentes quanto nestes
últimos cinco anos de sua vida, entre 1605 e 1610, aos quais está
dedicada essa exposição em Londres. É possível especular sobre aquilo
que esta violência deve à sua própria vida: assassinato, fugas, favores
excepcionais, quedas repentinas. É provável que a sua vida o tivesse
incitado a buscar o que existe de essencial nas situações e nas paixões.
Ele converte as cenas extraídas dos Evangelhos em cenas da vida
contemporânea.
A flagelação do Cristo? É o mesmo
que a tortura de qualquer prisioneiro. A degolação de são João Baptista
ou a de Golias por Davi? São iguais à execução de qualquer condenado,
seja ele inocente ou culpado, por qualquer carrasco que faz o seu
trabalho sem emoção em particular.
A ressurreição de Lázaro? Ela não
passa de uma cena de histeria coletiva, entre morte e desejo. A mesma
metamorfose acontece quando ele aborda temas mitológicos: um Cupido
adormecido torna-se um menininho de quem não se sabe se ela está vivo ou
morto, de tal modo as suas carnes estão definhando.
Tais temas foram tratados
centenas de vezes antes de Caravaggio, em muitos casos por pintores de
considerável importância. Mas isso não muda nada: nós temos a impressão
de vê-los abordados mesmo assim pela primeira vez e, o que é mais
estranho ainda, imbuídos por um coeficiente de realidade incrivelmente
superior àquele que a pintura consegue alcançar geralmente. Aliás, é
justamente por esta razão que nós esquecemos das obras anteriores.
Assim, para deixar todos
perturbados e transtornados, bastam 16 quadros, dos quais alguns nunca
haviam saído anteriormente de Nápoles ou de Messina. É quase a
totalidade do que sobrou da sua produção, com a exceção dos quadros que
estão conservados em Malta, e do admirável "Retrato do grande mestre
Alof de Wignacourt", que o Museu do Louvre, fiel à sua reputação de
raramente emprestar obras do seu acervo, se recusou a enviar para
Londres. Mas é amplamente suficiente para que esta exposição seja
literalmente espantosa.
Tradução: Jean-Yves de Neufville