Ouve-se com uma certa freqüência que o homem morre pela boca.
Corroborando esta afirmação, estudos realizados nas últimas décadas atribuem à
alimentação o fato de populações mediterrâneas serem menos propensas a doenças
cardiovasculares. Passou-se a denominar Dieta do Mediterrâneo o tipo de
alimentação de alguns povos da região do mar Mediterrâneo (Itália, Grécia,
Portugal, Espanha, França, entre outros), composta basicamente de vegetais,
frutas, cereais, azeite de oliva, peixe e acompanhada de vinho tinto. Mais tarde
descobriu-se o que passou a ser denominado “Paradoxo Francês”, pois embora os
franceses tenham uma dieta rica em gorduras saturadas são menos propensos a
enfermidades cardíacas, fato atribuído ao consumo regular de vinho tinto.
País é o 10º maior exportador do mundo
A partir destas constatações, o consumo moderado de vinho
tinto, elemento comum nesses hábitos alimentares, passou a ser recomendado, pois
estudos demonstram que alimentos e bebidas contendo flavonóides, antioxidantes
que compõem o grupo dos polifenóis, exercem efeitos fisiológicos benéficos na
prevenção de doenças crônicas causadas pelo estresse oxidativo sofrido por
células, tecidos e órgãos.
Se antes os alimentos eram avaliados em função da presença de
certos nutrientes, como proteínas, carboidratos, lipídeos, nos últimos anos
passaram a despertar, também, interesse em relação a compostos que protegem o
organismo. Embora fossem desenvolvidos estudos exclusivos sobre o vinho, são
limitadas as pesquisas específicas e detalhadas sobre a presença de
antioxidantes no suco de uva.
Esses estudos assumem particular importância no Brasil, décimo
exportador mundial de suco de uva, que vende principalmente para os EUA, Japão e
Canadá e que ampliou sua produção de 0,15 a 0,56 litro per capita entre 1995 e
2006, crescimento de quatro vezes em dez anos. É o que diz Andréa Pittelli
Boiago Gollucke, professora e pesquisadora da Universidade Católica de Santos
(UNISANTOS) e engenheira de alimentos pela Unicamp, onde apresentou tese de
doutorado no Departamento de Alimentos e Nutrição, orientada pela professora
Débora de Queiroz Tavares, que estuda a presença e o perfil de polifenóis no
suco de uva produzido no Brasil.
Inicialmente, Andréa esclarece que cerca de 90% da uva
destinada à produção de suco é transformada no concentrado de alto teor de
sólidos solúveis por uma única indústria na serra gaúcha, que depois será
reconstituído pelas empresas que o destinam ao público consumidor. O suco
concentrado estudado não está disponível ao consumo nesta forma, mas é o
principal ingrediente dos produtos conhecidos como “néctar de uva” ou “suco
concentrado de uva”.
Os 10% da uva restante são processadas por empresas que
produzem o suco diretamente para o consumidor, sem o processamento intermediário
de concentração. Estes são comercializados com a denominação de “suco de uva
integral”. Ela se propôs a avaliar a presença de polifenóis e a atividade
antioxidante in vitro no suco de uva produzido no Brasil nessas duas situações,
em todas as etapas dos processos, e considerando ainda dez meses de
armazenamento nas condições usualmente utilizadas.
Além disso, preocupou-se em determinar, nas várias etapas, os
teores de dois grupos de polifenóis específicos, as catequinas e as
epicatequinas, porque referidos na literatura como de maior poder de absorção
pelo organismo. Em colaboração com o Laboratório Thomson do Instituto de Química
da Unicamp utilizou-se a técnica de espectrometria de massas com ionização por
eletrospray (ESI-MS) para determinar a evolução de compostos fenólicos em cada
etapa do processamento do suco concentrado e durante o armazenamento. Realizou
também avaliação sensorial do produto bimestralmente por oito meses a fim de
verificar alteração na qualidade.
Diferentemente das pesquisas relatadas, ela explica que o
diferencial do seu trabalho está no fato de determinar a evolução dos polifenóis
em todas as fases do processo, o que considera fundamental na detecção de
eventuais modificações que possam ocorrer durante o processamento e o
armazenamento, pois se sabe que os polifenóis são sensíveis às modificações
térmicas.
Andréa considera os resultados altamente auspiciosos e conclui
que os sucos de uva constituem excelente alimento, com altos teores fenólicos
totais e capacidade antioxidante. O processamento e as condições de armazenagem
determinaram pouca alteração quantitativa nos fenóis e no estado oxidativo dos
sucos concentrados obtidos a partir das variedades Concord e Isabel, sobre os
quais se concentraram os estudos.
Embora os teores fenólicos totais se mantenham, constata, por
outro lado, que os perfis fenólicos sofreram alterações em ambos os casos e são
diferentes nos dois cultivares. As concentrações das catequinas e epicatequinas
decaíram ao longo do tempo, mas isso não alterou a atividade antioxidante in
vitro, pois deram origem a outros polifenóis. O armazenamento refrigerado do
concentrado no período de entressafra preservou a qualidade sensorial e a
capacidade antioxidante dos sucos. Resta saber se ela se manterá in vivo, e a
tese aponta para essa necessidade, diz Andréa.
As revelações – O objetivo foi estudar o suco de uva in vitro
e eventualmente compará-lo com o vinho. Em relação à variedade Concord, os
valores absolutos dos teores fenólicos totais e a atividade antioxidante
resultante são altos e comparáveis aos do vinho tinto, o que responde a uma das
indagações a que o trabalho se propunha. O suco obtido da variedade Isabel
apresentou valores um pouco inferiores, mas mesmo assim comparáveis aos do chá
verde, considerado um alimento antioxidante importante.
Em geral, o suco comercializado no Brasil é um “blend” das
variedades Concord e Isabel. Sensorialmente, os sucos destas duas variedades
apresentam diferenças marcantes e complementares, como revelou o estudo de
Andréa. No suco da variedade Concord predomina o gosto amargo e a cor marcante;
na Isabel, sobressai-se a doçura e o sabor característico de suco de uva.
A variedade da uva utilizada não é especificada nas embalagens
dos sucos comercializados, e Andréa considera que a conscientização do
consumidor é que levará ao aperfeiçoamento e detalhamento das informações que
ele deve receber em relação ao produto que adquire.
Efeitos – Andréa detectou, ao final da obtenção do concentrado
a partir da variedade Concord, a presença de quantidade importante de um
poderoso anticancerígeno pela primeira vez identificado durante o processamento
de suco de uva, o piceatanol glicosídeo, substância bastante estudada por suas
propriedades farmacológicas e de reconhecida capacidade anticancerígena. Seu
efeito é considerado superior ao resveratrol, mais conhecido e utilizado. Ela
conclui que o processo térmico empregado na concentração, além de não alterar o
poder antioxidante, promove a conversão de uma substância importante, que não se
degrada na restauração do suco.
Entusiasmada com o trabalho desenvolvido, a pesquisadora
afirma: “Temos um produto muito interessante em termos de manutenção de saúde.
Em trabalho também orientado pela professora Débora de Queiroz Tavares, minha
colega de pesquisa Jane Cristina de Souza constatou in vivo que o suco de uva
oferece proteção às células e conseqüentemente aos órgãos. È um produto
disponível e dentre os mais consumidos derivados de frutas cujo processamento
ocorre na presença de cascas e a sementes, que detêm, neste caso, substâncias
valiosas”.
Ela já esta recebendo as amostras da nova safra e continuará
as pesquisas considerando agora produtos oriundos do começo, meio e fim da
colheita de três variedades de uvas diferentes para compará-los. Vai analisar
também cascas e sementes resultantes do processo de extração, resíduo hoje
descartado, para determinar que substâncias delas provêm.
Depois de cinco anos de estudos Andréa se sente autorizada a
afirmar que “os consumidores deveriam se mobilizar para pedir que seja
disponibilizado no mercado o suco de uva concentrado reconstituído, mas sem
açúcar. No suco comercializado na forma de “néctar” consome-se muita água com
açúcar. Não há necessidade de açúcar, pois o suco da uva é naturalmente doce. A
adição de açúcar e água deveria ficar a critério do consumidor. Melhor seria
ainda se o consumidor pudesse comprar o próprio concentrado, que não exige
nenhum conservante, e que poderia ser diluído e até adoçado ao seu gosto”.
(Carmo Gallo Netto/Jornal da Unicamp)