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  A CULINÁRIA ITALIANA

Lágrimas com sabor

 

por João Luís Almeida Machado

Sempre que a encontramos na cozinha parecemos nos emocionar. As lágrimas rolam por nosso rosto como se estivéssemos amargurados ou alegres em virtude de nossas vitórias e conquistas. É claro que isso tudo não passa de especulação. Entretanto, é notório que a utilização dessa planta consumida desde a Antiguidade, pertencente à família das liliáceas, como ingrediente gastronômico atinge as pessoas em cheio quando se trata de falar a respeito de paladar.

Utilizada como condimento regular em praticamente todas as escolas gastronômicas contemporâneas, variando apenas a quantidade e a regularidade em seu uso (conforme os regionalismos), deve-se ainda contabilizar em prol da cebola inúmeras virtudes terapêuticas. De acordo com os nutricionistas, a cebola é rica em vitaminas B e C e também em minerais (qualidades diluídas levemente quando desidratamos ou transformamos em pó essa carnuda raiz vegetal).

Outro aspecto singular refere-se à variedade de tipos de cebola que pode ser encontrada mundo afora. Essa variação é percebida no tamanho, na cor e no aroma. A cebola pode  ser branca, amarela, roxa ou rosada; é encontrada em tamanho grande, médio ou pequeno; está disponível nos mercados in natura (frescas), em pasta, em pó ou ainda em flocos.

É possível utilizar as “onions” (cebolas em inglês) em praticamente todos os tipos de preparações culinárias, iniciando-se com as saladas e passando por molhos, conservas, temperos, pratos assados ou cozidos. Como seu sabor é marcante, é necessário que os cozinheiros tenham alguns cuidados para evitar que o sabor desse alimento prevaleça nos pratos que estão sendo preparados, a não ser, é claro, que o objetivo da preparação seja justamente esse.

As referências à utilização da cebola na história remontam à Antiguidade Oriental. Existem registros de seu consumo entre os hebreus, os egípcios, os povos da Mesopotâmia e, um pouco mais tarde, também entre os povos da Antiguidade Clássica, gregos e romanos. Isso nos deixa informados, a princípio, que o cultivo da cebola era regular em todas essas regiões e que, portanto, o uso das “zwiebel” (tradução de cebola para o alemão) estava disseminado tanto na África quanto na Ásia e na Europa, os berços da humanidade como a conhecemos.

No Antigo Egito, em várias tumbas, de eminentes pessoas das dinastias até os próprios faraós, foram encontrados vestígios de alimentos ou ainda papiros listando produtos que eram regularmente consumidos e, por esse motivo, depositados em túmulos para que fossem consumidos numa outra vida. É o caso da tumba do arquiteto Kha, que viveu por volta de 1400 a.C., na qual foram encontrados utensílios de cozinha e alimentos como vinho, pães, farinhas, carnes e aves salgadas, tâmaras, uvas, alho e, evidentemente, cebola.

Não eram somente os membros da elite egípcia que consumiam cebola, pelo contrário, praticamente todas as hortas daquela civilização produziam esse vegetal e também a alface, o alho e o alho-poró. Isso nos leva a concluir que se tratava de alimento popular também entre o povo egípcio.

Na Fenícia, um dos povos que mais consumiam vegetais na Antiguidade, há relatos como o de Plínio, o Velho, do cultivo regular de pepino, alho, alho-poró e, claro, cebola.

Mássimo Montanari nos diz, em trechos de sua obra História da Alimentação, que os gregos possuíam alimentação diversificada, na qual constavam leguminosas como o grão de bico, as favas e as lentilhas; e que em suas hortas despontavam, como na Fenícia e no Egito, a cebola ao lado do alho e do alho-poró. Também Hipócrates nos fala sobre a cebola como base alimentar grega e dá, sobretudo, ênfase à necessidade de consumo das “cipollas” (em italiano) para o equilíbrio alimentar e para a saúde das pessoas na Grécia Clássica.

Os romanos também estavam habituados ao consumo dos “fruges” (os frutos da terra) e, por esse motivo, tinham hortas, pomares e vinhas. Suas hortas lhes forneciam couves, nabos, hortaliças, ervas para cozinhar, alho e cebola. Os legionários do Império Romano, habituados a longas caminhadas em suas vitoriosas campanhas militares tinham sempre de ter a seu dispor alimentos fáceis de carregar e resistentes (que não se estragassem rapidamente), pelo menos por alguns dias. Entre esses alimentos encontravam-se azeitona, pão, figo, vinho e cebola.

Entre os romanos, a cebola, bastante popular, é discriminada no livro de culinária mais antigo de que se tem notícia, o De Re Coquinária, atribuído a Apicius. O autor dessa obra menciona dez ingredientes básicos para a preparação de um prato. Entre eles não se encontram a cebola nem o alho. Isso não significa que não fossem utilizados, acredita-se que o fato de serem encontrados em qualquer quintal os tornava muito comuns e popularescos, o que os desvalorizava entre os grandes cozinheiros da época. Sabe-se, no entanto, que eram regularmente utilizados tanto entre os pobres quanto entre os ricos.

Na transição da Antiguidade para a Idade Média, quando estava a se estruturar o feudalismo, definiu-se como hábito regular entre os camponeses (como complementação fundamental ao consumo de cereais e leguminosas), a utilização de legumes verdes ou frescos em sua alimentação. Entre esses, produzidos em hortas domésticas, encontravam-se as cebolas, os nabos, as couves, o alho e algumas ervas ou raízes (como a cenoura, o rabanete e outros).

Também os bizantinos, conforme relatos do século VI, comumente consumiam cebola. Havia inclusive a previsão do plantio desse alimento, assim como a produção de salsa, alho-poró, cenoura, coentro, beterraba e feijão em fevereiro de cada ano. Aliás, o consumo de alho e cebola junta-se ao de peixe frito e carne assada na composição das principais tradições gastronômicas do império bizantino.

Os árabes, por sua vez, usavam a cebola pra aumentar a consistência e modificar o sabor de suas iguarias. Era comum que misturassem sal, cebola, pimenta, coentro fresco (ou seco), canela e/ou gengibre às carnes que estavam habituados a consumir (como as de caprinos e ovinos) numa panela para compor os principais cozidos (aos quais acrescentavam legumes) já na Idade Média.

Assim como os mulçumanos, os judeus também utilizavam a cebola em suas produções alimentares. Os pratos da comunidade judaica, por sinal, mesmo que influenciados pelas tradições e restrições daquela cultura, tinham como marcante característica a utilização de muitos vegetais e de especiarias que, juntamente com as “cebollas” (termo em espanhol para cebolas) davam a esses pratos um sabor muito peculiar.

A partir dos séculos XII e XIII, com o Renascimento Comercial e Urbano, as hortas dos camponeses passaram a ter dupla função, ou seja, a de alimentar os próprios produtores e, além disso, disponibilizar os excedentes da produção nos mercados locais. Entre as mercadorias mais comuns e requisitadas nas vilas e cidades daquele período encontrava-se a cebola.

Ao final da Idade Média, como forma de comprovação da presença da cebola na alimentação européia daquele período, os quadros pré-renascentistas que trabalhavam com  natureza morta (especificamente com a imagem de alimentos) apresentavam esse vegetal aparecendo sempre cru, posicionado ao lado de pães e peixes.

O Renascimento Cultural preservou a importância da cebola já que os registros daquela época nos dão conta de que, ao lado dos cereais (aveia, trigo e cevada), de outros legumes (alho, alho-poró e couve) e de porções de carne e queijo, a cebola constituía parte da dieta básica.

O faustoso ambiente das cortes européias dos séculos XV a XVIII não ignorou a cebola, que continuava presente nos cardápios refinados, ainda que de forma discreta, nas combinações que faziam a fama dos grandes chefs de então. A cebola não aparecia tanto por ser considerada alimento caracteristicamente popular e barato. Preferia-se dar mais ênfase e atenção aos condimentos e temperos importados.

Isso obviamente não ocorria entre os camponeses, que ainda viviam de forma mais “pia e inocente”, alimentando-se daquilo que obtinham da terra, por esse motivo a cebola continuava sendo muito freqüente e importante em sua dieta. O campesinato europeu da Idade Moderna utilizava a cebola conjuntamente com a salsa, a menta, o alho ou o alho-poró, conforme as especificidades e possibilidades regionais, para temperar sua comida. Para eles, a importação de especiarias orientais ou americanas era um luxo incompatível com sua renda.

A cebola também tem relação com o surgimento dos restaurantes. A palavra “restaurant”, por sinal, remonta aos caldos medievais servidos em estalagens, hospedarias e tavernas localizadas nas rotas que ligavam as cidades do medievo. Nesses caldos, em que as carnes eram os principais ingredientes, as raízes, as ervas e a cebola compunham a mistura com o intuito de legar sabores e definir para os consumidores as qualidades próprias de cada estabelecimento.

Quando o termo “restaurant” retorna à cena, já no século XVIII, durante a Revolução Francesa, o intuito passa a ser designar os estabelecimentos que servirão o crescente e promissor público consumidor das cidades européias que fervilhavam com a industrialização nascente. Esses potenciais consumidores eram pessoas que não conseguiam voltar para  casa para fazer as refeições.

Por isso, surgiram os estabelecimentos com serviços, mesas com toalhas, talheres, cardápios e especialidades (carnes, aves, massas, caldos). Nesse ínterim, a cebola se mantém soberana, pois continua viva em todos os estabelecimentos que surgem (exceto as doçarias).

Atualmente a cebola, in natura ou em subprodutos oriundos de sua industrialização, permanece em nossos mercados como forte referência alimentar. Tempera o arroz, dá sabor ao feijão, compõe a salada, mistura-se a outros condimentos em caldos e sopas ou ainda dá sua graça nos sanduíches que devoramos.

Se não faz brotar nossas emoções quando a cortamos, ainda no trabalho de preparo dos alimentos para a confecção dos pratos, certamente a cebola toca fundo em nossa alma já que é ela que concede, a muitos de nossos pratos, o sabor e a alegria que tanto apreciamos e desejamos.

* João Luís Almeida Machado, editor do Portal Planeta Educação; doutorando pela PUC-SP no programa Educação: Currículo; mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP;professor universitário e pesquisador, atuando no Centro Universitário Senac em Campos do Jordão, SP

(© Prazeres da Mesa)

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