Gastronomia - O Canal de Culinária do ItaliaOggi

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  A CULINÁRIA ITALIANA

Slow Food: Gastronomia, direito humano

Carlo Petrini, fundador do movimento internacional slow food


O fundador do movimento internacional slow food sustenta: buscar uma alimentação prazerosa e em equilíbrio com a natureza é uma atitude política. O problema é que a velha tradição militante ainda despreza a complexidade e beleza do ato de comer

Carlo Petrini

Minha tese é simples: a gastronomia pertence ao domínio das ciências, da política e da cultura. Contrariamente ao que se acredita, ela pode constituir uma ferramenta política de afirmação das identidades culturais e um projeto virtuoso de confronto com a globalização em curso.

Porque não há nada de mau em apreciar os prazeres da boca, base fundamental do saber gastronômico e elemento essencial da qualidade de vida. O movimento Slow Food foi criado "pela defesa e pelo o direito ao prazer de se alimentar-se. Alguns militantes, freqüentemente os de esquerda, ficam chocados com tais afirmações, que eles associam à "decadência burguesa" ou ao "epicurismo degenerado". Alguns esclarecimentos são, portanto, necessários.

Primeiro, quando falamos de gastronomia, não há apenas o prazer. Segundo seu principal teórico, Jean-Antelme Brillat-Savarin (1755-1826), autor de La Physiologie du Goût (1826), a gastronomia é o "conhecimento racional de tudo o que é relativo ao homem enquanto ser que se nutre". A partir desta simples definição, com um pequeno esforço intelectual, podemos compreender que a gastronomia reposiciona a nutrição no centro de interesse de todos.

Brillat-Savarin queria, recorrendo às causas e efeitos, fazer da arte culinária uma ciência exata. Ele se dedicou a uma análise bastante criteriosa do mecanismo do gosto. Analisou a magreza e a obesidade, a influência da dieta sobre o sono, a juventude, o envelhecimento e a morte.

Um saber interdisciplinar

A gastronomia nos conduz a um saber interdisciplinar e complexo. Interessar-se por "tudo aquilo que é relativo ao homem enquanto ser que se nutre" exige conhecimentos nos domínios da antropologia, da sociologia, da economia, a química, a agricultura, a ecologia, a medicina, os saberes tradicionais e as tecnologias modernas.

Tal corpus científico amplia enormemente o papel reservado aos gastrônomos. Ao mesmo tempo, aumenta o círculo de pessoas que deveriam estudá-lo para melhor governar, melhor confrontar os problemas atuais ou, ainda mais simplesmente, melhor compreender nosso mundo. Como defende Wendell Berry, o poeta-camponês do Kentucky, "comer é um ato agrícola".

Não por acaso que, o movimento altermundialista teve, desde as manifestações de Seattle, contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) participação decisiva dos camponeses, e alguns de seus expoentes mais conhecidos (José Bové, Rafael Alegría, Evo Morales etc.) vêm do mundo rural. Também não é por acaso que a qualidade da alimentação industrializada suscita, em várias cidades, uma grande preocupação. E não é por à toa que, segundo o relatório das Nações Unidas, Millenium Ecosystem Assestement (2005), a maioria dos problemas ambientais são conseqüência dos métodos aberrantes de produção de alimentos.

Mais da metade da população mundial vive ainda em zonas rurais. Se somarmos a eles as pessoas que cuidam da produção ou da elaboração da alimentação nas zonas urbanas, podemos nos arriscar a dizer que a maioria dos habitantes da Terra estão envolvidos no setor da alimentação. Infelizmente, a maioria das técnicas utilizadas não são sustentáveis. O desperdício é enorme, devido aos métodos intensivos e produtivistas, que consomem mais recursos do que produzem.

Em alguns países desenvolvidos, os agricultores e operários das fábricas de alimentos representam apenas 2% da população ativa. Tudo foi industrializado. Fabrica-se em série uma alimentação sem sabor, padronizada, anti-ecológica e freqüentemente perigosa para a saúde pública (vários escândalos o provam, entre os quais o da “vaca louca”).

Pesquisar o bom produto, não o que vende mais

O futuro estará garantido apenas para homens e mulheres que produzam a comida por meio de técnicas compatíveis com os ritmos do planeta, revalorizando as técnicas antigas, respeitando a biodiversidade e as tradições gastronômicas estritamente ligadas à cultura e à economia de cada lugar do mundo. A ciência gastronômica – com seu conhecimento, seu respeito pela qualidade de vida e as diferenças culturais – deveria voltar-se a domínios compatíveis com as novas exigências ecológicas.

Colocar a ciência do prazer alimentar ao serviço de uma natureza preservada conduzirá o homem à produção da melhor alimentação possível. É uma aspiração tão legítima quanto natural. Mas não é levada em conta. Criamos uma produção que não pesquisa mais o bom produto, mas o mais comercializável. As características organolépticas dos alimentos foram degradadas, a variedade e a biodiversidade foram reduzidas. Emporcalhamos tudo, matando o solo, poluindo o ar, recorrendo demais aos transportes poluentes. Em lugar de acabar com o drama da fome no mundo, instalamos um sistema global desrespeitoso do trabalho de milhares de pessoas e socialmente criminoso.

Restabelecer os critérios de uma agricultura camponesa, a mais local possível, sazonal, natural, tradicional, constitui o começo de uma solução. Os seres humanos certamente devem nutrir-se, mas não às custas do equilíbrio do planeta. O gastrônomo e o consumidor não podem mais ignorar: mesmo que isso pareça engraçado, a escolha do que comemos orienta o mundo.

O movimento Slow Food baseou suas convicções na filosofia e abriu caminho para a construção de uma nova gastronomia. Propôs um programa de reeducação alimentar do gosto, com novos métodos, adaptados a todas as idades, na escola e no lazer. Organizou manifestações internacionais como o Salão do Gosto [1] de Turim, que luta contra a uniformização da alimentação e apresenta produtores de qualidade. Elaborou cerca de 300 projetos particulares de proteção à biodiversidade e às antigas tradições de produção pelo mundo. Contribuiu, em 2004, na criação da primeira Universidade das Ciências Gastronômicas, situada em Pollenzo e Colorno, na Itália.

Esta nova concepção da gastronomia não é apenas uma idéia. Tornou-se um movimento social, que se associa ao protesto universal contra todas as formas de uniformização induzidas pela globalização e participa de todas as "reivindicações verdes" em prol de um meio-ambiente e uma ecologia preservados.

O verdadeiro motor do movimento são os quase 100 mil adeptos da Slow Food ligados aos produtores, camponeses, artesãos e pescadores que partilham dessas idéias e que trabalham e trocam conhecimentos por um futuro melhor.

Parte de uma nova cultura política

Muitos militantes políticos continuam até agora insensíveis aos conceitos da nova gastronomia. Exceto em eventos como o Fórum Social Mundial, onde os camponeses desempenham um papel crucial, a política em geral insiste em ignorar a complexidade do ato de comer. No entanto, por trás de cada alimento tradicional, saboroso e ecologicamente sustentável, há séculos de saber, de inteligência e de criatividade. Por que correr o risco de apagar tudo isso em nome do produtivismo?

Felizmente, a esperança vem das campanhas. Essa foi a razão da criação da "Terra Madre – encontro mundial de comunidades de alimentação", uma reunião que aconteceu pela primeira vez em Turim em outubro de 2004. Mais de 5 mil pessoas – entre camponeses, pescadores, nômades e artesãos – participaram, representando 1200 comunidades de alimentação de 130 países do mundo [2]. Uma nova reunião acontecerá de 24 a 26 de outubro de 2006, novamente em Turim.

As comunidades de alimentação são grupos de indivíduos que trabalham em conjunto para produzir comida boa, ecologicamente limpa e respeitosa da justiça social. Sem "militantismo" ou apoio sindical ou partidário: os trabalhadores, portadores de uma experiência de lutas quotidianas, cooperam para sobreviver. A maioria pagou sua própria viagem, e o Slow Food garantiu a hospedagem dos "intelectuais da terra", que dão um senso novo à produção de comida. Sua reivindicação é extremamente política uma vez que ela remete ao mesmo tempo à dignidade, ao direito à soberania alimentar, e à liberdade de fazer seu próprio trabalho.

O projeto, para outubro de 2006, é de reafirmar estes objetivos. Os "intelectuais da terra" se reunirão com chefs de cozinha, homens e mulheres vindos dos quatro cantos do mundo, decididos a adotar produtos das comunidades de alimentação. Professores e universidades que tratam de assuntos ligados à alimentação, à revalorização dos saberes ancestrais, estarão amplamente representados, numa perspectiva de diálogo com os conhecimentos científicos modernos. A finalidade é valorizar todos os conhecimentos gastronômicos, no seu sentido mais amplo.

Uma vasta rede de produtores, pesquisadores, comerciantes, chefs de cozinha, camponeses e consumidores está prestes a nascer, graças a esta nova gastronomia, que concebe o ato de se alimentar como parte da produção. O consumidor torna-se um co-produtor. Porque de sua exigência gastronômica depende a qualidade do produto camponês.

Com "Terra Madre 2006", será criado um grupo transversal formado por "gastrônomos de um novo tipo", vindos de grandes e pequenas comunidades de alimentação, que se situam à margem das organizações políticas tradicionais. Trata-se de uma democracia dos humildes, afirmando-se pela maneira pela qual se alimentam, e que também pensam que um novo desenvolvimento é possível.

Longe de continuar sendo uma prática elitista, a gastronomia pode tornar-se uma ciência mais democrática. Por que a possibilidade de nutrir-se com produtos de qualidade, o prazer de saborear uma boa comida e a defesa da soberania alimentar devem ser direitos de todos. (Tradução: Julien Bonnin)

(© Le Monde Diplomatique)


Entrevista

Por Guilherme Aquino
Fotos: Arquivo Slow Food e Marco Sasia

CARLO PETRINI
O INIMIGO DO FAST-FOOD

O italiano que fundou o Slow Food fala dos avanços do movimento, insiste na defesa da alimentação saudável e nas vantagens da refeição tranqüila

Ele está por trás de dois grandes movimentos italianos que envolvem comida: o Slow Food e o Terra Madre. Fundou o primeiro há 12 anos, atualmente com 80 000 sócios em 100 países. Nascido para combater o fast-food, prega a volta da refeição lenta, saboreada com calma e baseada em alimentos tradicionais. O segundo movimento não recebeu por acaso o sugestivo nome de Terra Madre. Reúne lavradores, camponeses, pequenos produtores e artesãos de 130 países em defesa da distribuição sustentável dos alimentos e da preservação de espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, entre outras bandeiras ecologicamente corretas. Culto e polêmico, o italiano Carlo Petrini também criou a Universidade de Ciência Gastronômica, com unidades em Colorno, na região de Parma, e em Polenzo, no Piemonte. Filho de um ferroviário, aprendeu desde menino a respeitar a terra e as culturas de outras regiões, ouvindo os comentários do pai, que, por trabalhar na estrada de ferro, tinha contato com pessoas originárias de diferentes lugares. A mãe era verdureira.
 

Quando alguém lhe faz alguma pergunta sobre os fundamentos da arte culinária, ele costuma anteceder a resposta com esta declaração: "Bartolomeu Scappi foi cozinheiro do papa Pio V. Era um adepto da culinária rural local e sua importância é tamanha que, em 1570, publicou uma obra ainda hoje considerada fundamental. Nela, entre outras afirmações, o chef da riquíssima corte papal revela que suas melhores receitas para o Santo Padre tinham sido recolhidas junto aos lavradores pobres." Isso resume o pensamento central de Petrini, um homem cuja defesa de um mundo melhor o leva a constantes viagens aos quatro cantos do planeta, sem descanso. Sua rotina é intensa. Ele rege o trabalho de 200 pessoas envolvidas na universidade, na associação e na editora do Slow Food. No fim do ano passado, foi eleito "Herói Europeu do Ano" junto com outras personalidades, pela prestigiosa revista Time. Apaixonado pelo Brasil, diz que sente saudade da vitamina mista de frutas e do sabor da feijoada, que provou nas terras tupiniquins. Paladino mundial da alimentação saudável, Petrini abriu uma brecha em sua agenda atribulada para receber Gula. Começou a conversa de maneira muito receptiva: "Antes de mais nada, gostaria de dizer que conheço sua revista e agradeço o interesse".
 

Qual é seu prato preferido?
Não tenho uma preferência. Mas, como italiano, sou um comedor de pasta. Se estivesse no Brasil, ia gostar de uma boa feijoada. No Cairo, pediria falafel. O homem não deve cultivar o gosto único num mundo tão belo e diversificado quanto o nosso. Enfim, meu prato preferido depende do lugar onde me encontro.

Por que o senhor estimula os clientes dos restaurantes a perguntar a procedência dos alimentos ali servidos?
Um cliente deve expressar sua curiosidade, perguntar de onde vêm os ingredientes. Vou além: aconselho-o a optar pelo prato da casa. Assim saberá que a matéria-prima não viajou muito e, portanto, não depende de conservantes e aromatizantes artificiais. Quanto mais perto de sua zona de produção, mais barato, mais fresco e melhor o alimento.

Nos últimos anos, a culinária virou moda. É sinal dos tempos ou apenas um fenômeno passageiro?
A culinária virou moda como um sinal de lifestyle, quando na verdade a comida é uma exigência primária. Trazer a cozinha para dentro de um conceito de lifestyle é uma loucura, uma desgraça. Muito provavelmente está se desenvolvendo um conceito que não valoriza aquilo que se come. Ao contrário, saboreia-se o estilo. O melhor seria procurar conhecer a qualidade dos ingredientes, quem os trabalha e produz. Quando vejo esses cozinheiros enfeitados da televisão fazendo malabarismos com as panelas, pergunto-me: "Santo Deus, cadê a matéria-prima? Temos de valorizar as raízes da comida. Há uma ostentação excessiva na cozinha da TV. Exibe-se muito para que as pessoas, que estão em casa, sejam levadas a consumir.

O fast-food parece irreversível. O que comeremos dentro de 50 anos?
As coisas já não vão tão bem para o fast-food. O McDonald's, por exemplo, parou de crescer. Também acredito que a tendência ameaçadora da obesidade, provocada pela dieta desequilibrada, obrigará os governos a adotar uma política mais séria e responsável de alimentação. Na Inglaterra, o assunto está em discussão. Nos Estados Unidos, a preocupação já é muito grande e isso deve trazer boas mudanças. Outro avanço importante é que as populações nos diferentes países acordaram e não querem mais abrir mão de seu patrimônio gastronômico em favor da massificação causada pelo fast-food.
 

Como identificar os produtos típicos ameaçados?
Na verdade, estamos formando uma rede internacional de informantes. Por enquanto, dependemos de intelectuais, representantes das comunidades agrícolas, técnicos do mundo todo, que nos indicam produtos em perigo. Classificamos a situação atual como de emergência. É que o tempo se mostra curto. Se não defendermos os milhares de produtos em risco iminente, ficaremos sem patrimônios inestimáveis. Haverá tanto a perda de saber como de sabor.

Qual é o objetivo de criar a universidade de gastronomia?
No último século, a gastronomia perdeu sua honra, virou folclore. Mas, na realidade, é uma ciência complexa e multidisciplinar que envolve agricultura, economia, nutrição, prazer. Constitui matéria ampla e deve ser estudada profundamente em todos os seus matizes. Devolver a dignidade cultural ao mundo gastronômico é muito importante, e a universidade se torna fundamental para isso porque as pessoas sairão dali com uma cultura da comida diferente.

Existem fronteiras para a qualidade da comida?
De forma alguma. Uma feijoada servida num botequim do Rio de Janeiro pode dar tanto prazer como um prato servido num restaurante três-estrelas de Paris. Um falafel nas ruas do Cairo é capaz de fazer o mesmo. Não se pode fazer um ranking da qualidade da comida, nem italiano, francês, de lugar algum. Cada país tem seu patrimônio culinário, que deve ser respeitado como parte do acervo da humanidade. As receitas são a expressão da cultura de um povo, constituem sua identidade. Cozinha é como uma linguagem: eu falo italiano, você fala português, cada um tem seu idioma. O dever de um gastrônomo é respeitar e conhecer as expressões culinárias dos diferentes povos.
 

É verdade que o senhor troca de calçada quando encontra um fast-food pelo caminho?
Não é verdade. Enfrento-o e passo na frente. Infelizmente, porém, sofro uma enorme agressão olfativa. O traço que une a cultura do fast-food é justamente o mau cheiro. E isso tanto em Moscou como no Rio de Janeiro. Onde existir uma loja de fast-food haverá um rastro de fedor. Quando me deparo com esse mau cheiro, ocorre-me imediatamente a sensação de que estamos ameaçados de perder a identidade, a memória. Uma das melhores recordações que guardo de minha primeira viagem ao Brasil, mais exatamente ao Rio de Janeiro, é a dos quiosques que oferecem sucos de frutas e as chamadas vitaminas. Que maravilha sentir aquele perfume!

Qual é o papel do Brasil na cultura alimentar?
É um dos países mais ricos em biodiversidade. Acontece que, por não ser suficientemente rico, os piratas internacionais o estão invadindo. Querem se apropriar de seu valioso patrimônio. (Matéria publicada na edição 148 - Fevereiro/2005)

(© Revista Gula)

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