O herdeiro e presidente da famosa torrefação italiana Illycaffè diz
que o melhor café do mundo não existe, critica a pressa em vender dos
produtores brasileiros e condena o coador de pano
Texto Cristiana Menichelli
Fotos Kiko Ferrite
Quem encontra pela primeira vez Andrea Illy se impressiona com sua
elegância e o ar reservado. Neto de Francesco Illy, o oficial do Exército
austro-húngaro que fundou a famosa torrefação com o nome da família, em
1933, na cidade italiana de Trieste, assumiu a presidência da Illycaffè no
ano passado, substituindo seu pai, Ernesto. E anunciou que vai manter a
empresa no mesmo rumo: revolucionando a incomparável bebida e o modo de
apreciá-la na xícara. A marca conquistou respeito internacional graças à
qualidade de seu blend para espresso. Presente em 130 países, a Illy, além
de torrar café e despachá-lo para os diferentes cantos do planeta,
comercializa xícaras especialmente projetadas para degustação e mais
recentemente passou a produzir também máquinas de espresso.
Andrea é a terceira geração da família no negócio. Estudou Química
mirando o trabalho na Illycaffè. Está com 41 anos, mas tinha apenas 29
quando assumiu o cargo de administrador da empresa. Em 2005, foi nomeado seu
presidente. A escolha partiu dos dois irmãos e da irmã de Andrea, todos mais
velhos. Além disso, teve o apoio total do patriarca, Ernesto Illy, figura de
projeção internacional. O caçula herdou do pai, um cientista dedicado às
pesquisas ligadas ao café, a paixão pelo produto e a obsessão pela
qualidade. E, assim como fizeram Francesco e Ernesto, também demonstra uma
aptidão nata para inovar.
No mês passado, Andrea veio ao país para participar do Prêmio Brasil de
Qualidade do Café para Espresso, criado por Ernesto Illy, com o objetivo de
identificar e selecionar os fornecedores dos melhores grãos. O prêmio,
anual, já está na 15a edição. A torrefação italiana compra 160 000 sacas de
café brasileiro a cada ano para elaborar seu blend e faz questão de
estimular a qualidade. Aberto a todos os cafeicultores, o concurso recebe
amostras de café verde (não-torrado) de diferentes regiões nacionais. Os dez
primeiros colocados recebem prêmio em dinheiro. A distinção se mostrou
crucial para a recuperação da qualidade do produto brasileiro e o resgate da
auto-estima dos cafeicultores. Com sua iniciativa, a Illy passou a comprar
diretamente dos produtores, incentivando-os e transmitindo conhecimento
através de cursos técnicos e de aperfeiçoamento da Unilly - a Universidade
Illy do Café. Aberta no Brasil em 2000, a instituição pioneira resulta de
uma parceria entre a empresa e a Faculdade de Economia e Administração da
Universidade de São Paulo. Horas antes da cerimônia de entrega do prêmio,
realizada em março, na capital paulista, Andrea concedeu a seguinte
entrevista exclusiva a Gula.
A que se deve o prestígio internacional da marca
Illy?
Ano após ano, os esforços para alcançar a qualidade criaram nossa reputação
no mundo inteiro. Tudo o que fazemos tem algo de especial, desde a maneira
como compramos o café, direto dos cafeicultores. Outra razão é o cuidadoso
design de tudo o que envolve nosso produto, sejam embalagens, xícaras ou
máquinas. As pessoas notam essa diferença.
Quais são as maiores contribuições da Illy ao
café?
A Illycaffè é uma empresa inovadora e desde o século passado vem fazendo
avanços que mudaram a história do produto. O primeiro foi o sistema de
conservação, com a introdução de gás inerte no interior da embalagem. Essa
técnica, conhecida por pressurização, permitiu à Illy exportar café para
lugares distantes. Obrigou-nos também a fabricar nossas próprias embalagens.
Por isso, em Trieste, além da torrefação, temos uma fábrica de latas. Além
disso, meu avô desenvolveu a illeta, a primeira máquina automática que
substituiu o vapor pelo ar comprimido. Dessa maneira, a água não precisa
mais ser fervida a fim de que o vapor gere pressão para a extração da
bebida: aquecida a 90 graus Celsius, e sob pressão de 9 atmosferas, evita
queimar o café. A illeta serviu de modelo para as atuais máquinas de
espresso. A terceira inovação foi o sachê, que facilitou o preparo do
espresso por qualquer pessoa leiga e em diferentes ambientes, em casa ou no
escritório. O sistema de compra do café diretamente do produtor também foi
uma mudança introduzida pela Illy.
O que se pode esperar da terceira geração da
Illy?
Temos muitos projetos em desenvolvimento. A Unilly vem impulsionando a
cultura do café no Brasil, treinando cafeicultores e profissionais da área.
Outro projeto é o modelo de cafeterias que serve o café Illy. Em três anos,
já abrimos uma centena delas, principalmente na Europa. Do ponto de vista
tecnológico, os esforços se concentram atualmente no aprimoramento de novos
sistemas de preparação, como o modo individual de sachê. Essa é uma das
razões pela qual decidimos interiorizar a produção de máquinas de café. Mas
pretendemos continuar inventando coisas.
Qual é a melhor maneira de preparar o café?
O espresso, certamente. Torna-se um elixir, um concentrado de corpo e dos
melhores aromas, com um ótimo equilíbrio entre acidez e amargor. É a maneira
perfeita de tomar café.
Tanto
o café do tipo arábica quanto o robusta se prestam ao preparo do espresso?
Quando se persegue a melhor qualidade, só é possível encontrá-la nos grãos
da espécie arábica. O robusta tem mais amargor e o dobro de cafeína, além de
ser pobre de aromas.
O que é melhor: blend ou cafés de uma única
origem?
Uma vez tendo optado pelo arábica, a melhor maneira de preparar o espresso é
a partir de um blend. O principal elemento dessa mistura é o equilíbrio
entre aromas intensos, como chocolate, e frescos, como frutas e flores. Deve
haver balanceamento também entre o gosto amargo, doce e ácido, e plenitude
de corpo. O café brasileiro é muito importante para o blend, pois confere
corpo e doçura, resultado da secagem dos grãos ao sol. Já os da América
Central e os da África Central e Ocidental são lavados, têm aromas mais
florais e frutados, um pouco mais ácidos e com menos corpo. Assim, para
fazer um espresso redondo é necessário mesclar cafés arábicas brasileiros e
lavados.
É praticamente impossível encontrar plenitude de
aromas, sabor e corpo num café de uma única origem?
Exatamente. É como numa orquestra, quanto maior a diversidade de
instrumentos, mais rica a música. No blend da Illy, há nove variedades de
arábica de lugares diferentes. Os cafés de origem são uma estratégia de
marketing para comercializar o café.
Por que o café brasileiro, apesar de estar entre
os de maior qualidade no mundo, não atinge preços tão elevados quantos
alguns da América Central?
Com relação aos preços oficiais do mercado, temos de considerar duas coisas.
O café brasileiro costuma ser processado de maneira mais produtiva que os da
América Central. A colheita brasileira é mais fácil de fazer, mecanizada em
várias regiões. Conseqüentemente, o rendimento da plantação se torna maior.
O método de beneficiamento após a colheita também é mais eficiente. A
secagem feita ao sol custa menos. Todas essas características refletem no
preço final. Mas não é só isso. Existe também uma questão de marketing, pois
a imagem dos cafés lavados entre os americanos denota sofisticação. Há dez
anos o produto brasileiro era muito ruim. No futuro, se os cafeicultores
brasileiros continuarem aprimorando a qualidade, acredito que a diferença de
preço diminuirá sensivelmente.
Quem produz o melhor café do mundo?
Isso não existe, pois a maioria dos países cafeicultores oferece cafés com
diferentes particularidades. Uma maneira de considerar a qualidade é a
presença de características positivas, do ponto de vista aromático, e a
ausência de defeitos. Esses cafés são encontrados no Brasil, na Colômbia, em
El Salvador, na Guatemala, no México, no Havaí, na Indonésia, entre outros.
Que regiões do Brasil têm cafés de maior
qualidade?
Sessenta por cento do arábica brasileiro procede de Minas Gerais. Há regiões
muito constantes na produção e na qualidade como o Cerrado mineiro e a área
paulista de Franca. E há novas zonas que estão aprimorando, como o sul de
Minas, na Zona da Mata.
O blend da Illy contém café brasileiro de uma
única região?
Jamais compramos cafés a partir de critérios geográficos. Nossa escolha é
regida pela qualidade. Por isso, o prêmio está aberto a todas as regiões
produtoras do Brasil. Da mesma maneira, em outros países orientamo-nos pela
busca contínua de novas áreas com potencial independente do território.
Em que aspectos a cafeicultura brasileira
precisa mudar?
Os produtores nacionais têm demonstrado pressa em vender o café. Assim,
fazem uma secagem demasiadamente curta, que resulta num café não-homogêneo.
Esses grãos, que não tiveram tempo de ser estabilizados em tulha e de
alcançar o nível final de umidade, correm risco de desenvolver o defeito de
madeira, que causa odor ruim. Atualmente, esse constitui o problema
principal. É também uma das razões pela qual a Illy está desenvolvendo um
programa de pesquisa com a Universidade Federal de Viçosa, que conta com uma
estação experimental de beneficiamento. Outro problema diz respeito à
irrigação. O mais importante do ponto de vista do investimento não é apenas
decidir irrigar, mas fazer uma escolha da técnica adequada.
Há relação entre beber um vinho e apreciar um
espresso?
Como acontece com o vinho, a degustação do café implica apreciar os aromas,
o corpo e o equilíbrio de amargura e acidez. O café também inspira a
atividade intelectual, o convívio social, a criatividade. Aliás, sempre foi
a bebida oficial da cultura. Convém notar ainda que o café é produzido em
países considerados exóticos pelos consumidores europeus e americanos. São
lugares como o Brasil, a América Central, a Etiópia, a Indonésia, a Índia,
berços de culturas peculiares, aspecto que não está presente no vinho,
elaborado nos países onde é também consumido.
O senhor prefere beber o espresso curto ou
longo?
Curto. Na Itália, dizemos "espresso giusto". Deve ser tirado com 25 ou 30
mililitros de água. Se for longo (com mais de 40 mililitros), começa a
extrair os aromas indesejáveis, com gosto de madeira.
Café faz bem ou mal à saúde?
Faz muito bem, sobretudo o espresso. Há duas categorias de substâncias
positivas presentes na bebida. Uma é a cafeína; a outra, os antioxidantes.
Já foram comprovados os efeitos positivos da primeira. Estimula a atividade
cerebral, a memória, a criatividade, a sociabilidade, além de melhorar o
humor, a visão. Tem ainda bons efeitos sob asma e mal de Parkinson. Mas
também há efeitos negativos. Por exemplo, se o café for preparado no coador
de pano, o contato prolongado do pó com a água intensifica a extração de
óleos essenciais que contribuem para a elevação do colesterol no organismo.
O melhor é usar filtro de papel. No espresso, esses óleos não passam para a
xícara.
Consumido em que quantidade o café faz bem?
Depende da pessoa, mas acho que o ideal fica entre três e sete xícaras de
espresso por dia. Cada xícara contém 40 miligramas de cafeína. A do café de
coador, por sua vez, chega a ter três vezes mais cafeína.
Que país demonstra maior zelo pela bebida?
A Itália é considerada o país do café por diversas razões. O espresso nasceu
ali. Além disso, existe a cultura do bar. Na Itália, há uma cafeteria para
cada 400 habitantes, ou seja, 140 000 para uma população de 57 milhões de
pessoas. Considero esse número incrível. O país tem ainda a mais alta
concentração de cafeterias históricas, com dois, três séculos. E diferentes
cidades têm relações ímpares com o café. É o caso de Nápoles, onde a cultura
do café é muito forte e apresenta particularidades, como o sospeso. Funciona
assim: quando um napolitano vai ao bar tomar um espresso, paga o seu e
também o "do próximo" cliente. Assim, quando alguém está sem dinheiro, entra
no bar e pergunta se ali tem um sospeso, ou seja, um "pendurado". E toma seu
espresso!
(©
Revista Gula -
edição 162)