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  A CULINÁRIA ITALIANA

O ragu napolitano e seus irmãos de fogão

Ragu napolitano do Verdi: os mais gulosos dizem que degustá-lo equivale a entrar no céu   Márcio Fernandes/AE

A Itália possui versões desse prato em diferentes regiões, todas notáveis

J.A. DIAS LOPES
Especial para o Estado

  Caminhar aos domingos de manhã pelas ruas da turbulenta e fascinante cidade de Nápoles, no sul da Itália, é submeter-se a uma gratificante experiência olfativa. Sente-se no ar o cheiro de ragu, um molho de longo cozimento, à base de carne bovina, costeletas de porco, vinho tinto, água, azeite, queijo parmesão, cebola, manjericão e haja tomate!

   Colocado sobre uma massa de gosto local - os tubos curtos e canelados do rigatoni, por exemplo -, transforma-se no primo piatto dos almoços realizados em família no dia inaugural da semana. Os napolitanos mais gulosos dizem que saboreá-lo equivale a entrar no céu.

   Sua preparação requer prática, habilidade, paciência e uma colher de pau para mexer constantemente o molho em fogo baixo e não deixar pegar no fundo.

   O cozimento longo do ragu, que começa ao raiar do dia e dura no mínimo seis horas, destina-se a conferir-lhe textura concentrada e sabor intenso. Na descrição apaixonada do escritor Giuseppe Marotta (1902-63), publicada no livro L'Oro di Napoli, filmado por Vittorio de Sica em 1954, o aroma exalado através das janelas das casas "vem das panelas de terracota que alouram a cebola e fazem o recém-colhido raminho de manjericão liberar nobres essências". Curiosamente, as carnes são retiradas na hora de servir e saboreadas à parte, como secondo piatto. Sobra um molho escuro, mágico, espetacular. Merece dos napolitanos uma devoção quase religiosa, comparável à que dedicam à pizza e ao padroeiro San Genaro - aquele cujo sangue se liquefaz milagrosamente, diante dos fiéis extasiados, todo o dia 19 de setembro.

   Até meados do século 19, a mais alegre e espontânea população de uma cidade da Itália saboreava as massas, inclusive as de fio longo, cobertas ou não pelo ragu, recorrendo apenas às mãos. Desprezava o garfo porque, com a sua intermediação, não conseguia pegá-la direito. Até então, esse utensílio crucial ao ato de tirar a comida do prato e levá-la à boca, desenvolvido pelos bizantinos e aperfeiçoado por venezianos e florentinos, possuía três dentes. O rei de Nápoles Fernando II de Bourbon adorava espaguete. Mas detestava literalmente colocar a mão na massa. Constrangido, só a comia escondido. Mas Gennaro Spadaccini, o despenseiro real, encontrou uma solução. Colocou um quarto dente no garfo do soberano. O mundo inteiro copiou a novidade. Pulcinella, o personagem mascarado, tagarela, oportunista e preguiçoso imaginado em Nápoles no século 17, caricatura o hábito de seus conterrâneos. Em quadro famoso do pintor Michelle Cammarano (1835-1920) aparece alimentando o "filhote". Ministra-lhe na boca, com a mão direita, um longo fio de massa.

   A alma do ragu napolitano é o tomate. Chamam-no na Itália de pomo d'oro ou pomodoro (maçã de ouro). Fica difícil imaginar como a população inteira de uma cidade do mundo antigo, fundada pelos gregos sete séculos antes de Cristo, sobreviveu durante tanto tempo sem esse ingrediente indispensável.

   Originário do Peru e do México, o tomate só chegou ali no século 16, após a descoberta da América. Enfrentou resistências iniciais, julgaram-no venenoso. Eliminada a suspeita, passou a enriquecer diferentes atrações da sedutora cozinha napolitana. Em nenhum lugar do mundo foi adotado com o mesmo entusiasmo. Alcançou o esplendor ao se converter em ragu ou no molho de tomate comum e, sobretudo, quando combinado à massa. O gastrônomo e compositor Giacomo Rossini (1792-1868), autor da ópera-cômica O Barbeiro de Sevilha, aplaudiu a harmonização.

   "Para que os macarrões resultem apetitosos, precisa-se de uma boa massa, ótima manteiga, bastante molho de tomate, excelente parmesão e uma pessoa inteligente que saiba cozinhar, embelezar e servir", sentenciou ele. A fim de conservar melhor sua hortaliça favorita, os napolitanos foram os primeiros a transformá-las industrialmente em conserva, usando tecnologia desenvolvida em casa. Surgiram assim o concentrato (extrato), a polpa (pedaços), a passata (suco espesso). Isso sem falar nos pomodori pelati (tomates pelados), inicialmente desidratados ao sol, hoje elaborados em forno. Embalados em lata ou vidro, esses produtos aportaram nas mais diferentes recantos do mundo.

   A Itália dispõe de vários ragus notáveis, espalhados por diferentes regiões do país. Diferem nos ingredientes e detalhes do preparo, embora tenham em comum o uso de carne, tomate e o fato de engrandecer pratos de massa. O mais forte concorrente do ragu napolitano é o bolonhês (alla bolognese). Nele a carne não é descartada, mas incorporada ao molho, desfiada, picada ou moída.

   No passado, segundo o teórico na cozinha italiana Luigi Veronelli, na obra Il libro della pasta (Fabbri Editore, Milão, 1985), era sempre desfiada pelo longo cozimento e incorporada naturalmente ao molho. Hoje, ela é desfiada, picada ou moída por economia de tempo. A Grande Enciclopedia Illustrata Della Gastronomia (Selezione dal Reader's Digest, Milão, 1999) registra preparações denominadas "ao ragu" (carne ao ragu, braciola ao ragu).

   São fatias grandes ou pequenas de carne, compactas ou recheadas e enroladas como rocambole. Cozinham lentamente em molho à base de tomate, vinho e temperos. Por extensão, também se fala em ragu de lula ou de polvo. A Grande Enciclopédia afirma que "são definições de fantasia". A palavra italiana deriva do francês ragoût (guisado). Mas os napolitanos, que o grafam "rraú", desconversam sobre essa ascendência e sustentam que, do ponto de vista culinário, sua origem é rigorosamente autóctone. O fato é que vários países exibem preparações assemelhadas. O precioso barreado paranaense - habitualmente feito sem tomate e acompanhado farinha de mandioca, rodelas de banana e fatia de laranja -, caso deixasse de ser prato principal e assumisse a função de molho, seria o grande ragu brasileiro.

(© O Estado de S. Paulo)


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