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  A CULINÁRIA ITALIANA

Harry's, o bar das invenções geniais

O interior do bar: desde a fundação, faz-se ali ótima comida tradicional, que atrai turistas do mundo todo

Inaugurado em maio de 1931, ele é um templo em Veneza para fãs de coquetéis e carpaccios

   Mal se abriu a porta do bar do Hotel Europa-Britannia, um dos mais prestigiados de Veneza - e já entraram quatro americanos sedentos. Chegaram às dez e meia da manhã e ao meio-dia saíram para almoçar. Voltaram à tarde, para nova sucessão de tragos. Fizeram o mesmo à noite. Por dois meses repetiram o ritual etílico. Estavam hospedados no hotel. A figura mais importante do grupo era o estudante Harry Pickering, que sofria uma forma inicial de alcoolismo e afogava em coquetéis o tédio de viajar pelo mundo sem amigos. Acompanhavam-no a velha tia assanhada, seu jovem gigolô e um cachorro pequinês. O quarteto ingressava no bar e solicitava coquetéis ao experiente barman Giuseppe Cipriani. Encerrava a sessão com uma dose dupla de Bourbon e Seven-Up. O cãozinho felpudo bebia água mineral com gás.

   Um dia Harry brigou com a tia e seu parceiro. O casal se aborreceu e partiu.

   O dinheiro começou a escassear, o estudante a se endividar e a beber cada vez menos. Cipriani ficou preocupado com a situação. Harry e ele haviam se tornado amigos. O barman chegou a confidenciar ao cliente o sonho secreto de abrir o próprio bar. Cipriani socorreu Harry, emprestando-lhe dez mil liras, o que não era pouca coisa na época. O amigo pagou as contas e regressou aos Estados Unidos. Passaram-se meses sem nenhuma notícia do viajante. Os colegas de Cipriani achavam que ele não teria o dinheiro de volta.

   Em fevereiro de 1931, Harry voltou, saudou efusivamente Cipriani e falou: "Obrigado pela ajuda. Eis a soma que me emprestou. Agora, tome um pouco mais de dinheiro. É para abrirmos um bar em sociedade." As notas somavam 40 mil liras. "A casa se chamará Harry's Bar", acrescentou. Os dois foram sócios por algum tempo, até Harry vender sua parte a Cipriani. Sentia falta de vocação para o comércio. Sempre que ia a Veneza, porém, aparecia ali.

   Sentava-se no balcão, quase sempre no mesmo lugar, e bebia seus coquetéis.

   "Nos primeiros anos, foi um grande cliente de si mesmo", afirmava Cipriani, falecido em 1980 aos 80 anos de idade.

   Nasceu assim o melhor bar do mundo, inaugurado em maio de 1931. Cipriani contou a história que relatamos num dos capítulos do livro La Leggenda dell'Harry's Bar, escrito pelo seu filho Arrigo (Harry em italiano) e publicado em 1997. Sete décadas depois, a casa permanece no mesmo endereço, na Calle Vallaresso, 1323, a cem passos da Praça São Marcos. Ir a Veneza e não conhecer o Harry's Bar é como ir a Roma e não ver o papa ou ir a Paris e não subir na Torre Eiffel. Já se deliciaram com seus coquetéis personalidades como Ernest Hemingway, Winston Churchill, Pablo Picasso, Arturo Toscanini, Guglielmo Marconi, Somerset Maugham, Aristóteles Onassis, Maria Callas, Orson Welles, o Duque de Edimburgo, Truman Capote, Henry Kissinger, Sophia Loren, Luciano Pavarotti, Woody Allen, Aga Kahn e sua mulher, a estonteante Begum. Segundo Arrigo Cipriani, atual administrador da casa, "a mais bela mulher que já passou por aqui, incluindo as profissionais".

    Além de preparar coquetéis concebidos em outros balcões do mundo, como o Dry Martini, Daquiri, Screwdriver, Negroni, Manhattan, Bloody Mary e Americano, o Harry's Bar tem criações próprias. Uma de suas invenções geniais é o Bellini, surgido em 1948. Mistura uma parte de polpa de pêssego e três do espumante italiano prosecco di Conegliano. Antigamente, só existia Bellini na época dos pêssegos. Desde o aparecimento do freezer, a polpa da fruta é congelada. O coquetel pode ser feito todo o ano.

   Pintura - O pêssego é descascado e passado no chinois. O nome do Bellini homenageia o pintor homônimo. Cipriani, seu criador, amava as artes plásticas. Giovanni Bellini (1430-1516), mestre da pintura veneziana do Renascimento e um dos pioneiros na técnica da pintura a óleo, era um de seus ídolos. Apesar de doce, o coquetel encanta homens e mulheres. Campeão de pedidos no Harry's Bar, tem preço elevado. Cada copo sai por 13 dólares. Mesmo assim, na alta temporada são vendidos 600 coquetéis por dia.

   O bar é a atividade mais importante da casa. Desde a fundação, faz-se ali ótima comida tradicional. O cardápio oferece antipasti, zuppe, primi e secondi piatti, doces, sorvetes e até um menu do dia. O prato forte - e outra grande invenção do Harry's Bar - é o carpaccio. A receita original manda cortar em lâminas uma peça de contrafilé fresco, nunca congelado. A seguir, são dispostas no prato como as cartas de um baralho. Finalmente, recebem um molho à base de maionese e worcestershire sauce, suco de limão, um pouco de leite, pimenta branca moída e sal. O nome foi dado por Cipriani em 1950, quando o criou. Inspirou-se no veneziano Vittore Carpaccio (1460-1526), cujos quadros apresentam os mesmos tons vermelhos de mais uma obra antológica de Cipriani.

   O molho do prato é desenhado em formato de grade, com o garfo. Evoca os traços do pintor russo Vassily Kandinsky (1880-1938), que abriu caminho para a arte abstrata. Cipriani afirmou haver criado o carpaccio para uma amiga e cliente, a condessa Amalia Nani Mocenigo. Submetida à severa dieta, ela estava proibida pelo médico de comer carne cozida ou assada. Inconformada com o espartilho alimentar, pediu socorro ao fundador do Harry's Bar.

   Cipriani foi à cozinha e voltou com o carpaccio. O preço do prato sempre foi salgado. Atualmente, há dois tipos de porção, pesando entre 40 e 60 gramas.

   A menor custa 42 dólares; a outra, 53. Ainda assim, somadas as duas opções, a cozinha prepara cerca de 200 porções diárias de carpaccio.

   Ao contrário de seus concorrentes venezianos, o Harry's Bar não possui instalações luxuosas. Sua decoração discreta, com madeira e tecido nas paredes, foi orientada pelo barão Gianni Rubin de Cervin, um amigo refinado de Cipriani. Mas respeitou as convicções do dono. A idéia era deixar os clientes à vontade. A casa tem boa luz, mas não excessiva. Cipriani detestava locais muito claros e muito escuros. Preconizava o meio termo. "A luz forte deixa o ambiente pouco caloroso", dizia. "E na penumbra a gente acaba falando em voz baixa e contida." O Harry's Bar ocupou um local onde antes havia um magazine de cordas. Primeiro Cipriani o alugou. Depois, comprou. No início, o salão media apenas 5 metros por 9. Hoje, a casa possui dois andares. O de cima foi incorporado em 1960. No térreo cabem 60 pessoas sentadas. No outro, 70.

   Clientes fundamentalistas só consideram o térreo. O escritor americano Gore Vidal, por exemplo, que vive em Roma, recusa-se a freqüentar o primeiro andar. As mesas e cadeiras são baixas e confortáveis. Logo na entrada, à esquerda, encontra-se o balcão. "A posição estratégica é para dar apoio ao tímido que acabou de entrar", teorizava Cipriani. "Poucos fazem idéia de quantos tímidos se refugiam no bar. Talvez todos os que apareçam sejam um pouco, inclusive aqueles que não aparentam." O Harry's Bar só permaneceu fechado na 2.ª Guerra Mundial, entre os anos de 1943 e 1945.

   Sedutor - Já apareceram centenas de explicações para o sucesso e mística da casa. Cipriani sorria vitorioso quando lhe pediam sua versão. "Aqui o cliente sempre encontra três coisas - qualidade, sorriso e simplicidade", respondia. Competente e sedutor, o pai do Harry's Bar era mestre em conquistar pessoas e fazer amigos. No depoimento do livro de Arrigo, ele conta que entre seus primeiros clientes havia um inglês.

   Quando sóbrio, falava pouco. Após beber três ou quatro Dry Martini, soltava a língua. Mesmo assim, Cipriani ignorava o que fazia em Veneza. Sabia apenas seu nome: Collin Hawks. Um dia apareceu no Harry's Bar e declarou: "Parto hoje." Tomou uns goles, enrolou a língua e pediu informação de como chegar à Piazzale Roma, ponto de saída da cidade.

   Com a dificuldade que tinha para falar, Cipriani imaginou que precisaria no mínimo de uma semana para chegar ao destino. Então, ofereceu-se para acompanhá-lo. Hawaks aceitou a ajuda. Na Piazzale Roma, estendeu-lhe a mão e agradeceu. Duas semanas mais tarde, um cliente irrompeu no Harry's Bar com um exemplar do jornal inglês Daily Mail e gritou a Cipriani: "Leia o que se fala aqui de você!" O texto contava maravilhas da gente de Veneza: "No Harry's Bar, existe Giuseppe Cipriani (...). Procurando-o, você encontrará uma cidade amiga e sem mistérios que o acolherá de braços abertos." Hawaks era redator do Daily Mail. Desde então, outros jornais estrangeiros louvaram o bar das invenções geniais.

   Apelido - Meca internacional de bebedores, santos ou pagãos, nobres ou plebeus, sobretudo daqueles que se comovem quando o barman lhe entrega o coquetel favorito, o Harry's Bar coleciona histórias divertidas. Hemingway, outro amigo de Cipriani, passou por ali quando estava na fase do Dry Martini. Pedia o coquetel pelo apelido de Montgomery.

   Cipriani decifrava o código. Preparava para Hemingway um Dry Martini com gin e vermouth, nas mesmas proporções usadas pelo célebre general inglês no campo de batalha: 15 soldados para cada inimigo.

   Certa vez, apareceram seis clientes italianos. Por engano, pediram Dry Martini. Nem sequer conheciam o coquetel. Queriam na verdade Martini, o vermute. Mas provaram e gostaram da novidade. Beberam rápido e ficaram alegres. Pagaram a conta e foram embora. Voltaram meia hora depois, ainda alegres. Solicitaram outra meia dúzia de Dry Martini. Quando Cipriani serviu a primeira rodada, viu que na roupa de cada um havia um papel afixado e nele a seguinte inscrição: "Devo voltar à Mantova. Se alguém me encontrar, leve-me à Piazzale Roma às 6,30 horas." No ano passado, o Harry's Bar ganhou o status de "bem cultural" do governo italiano, ou seja, passou a ser protegido como monumento histórico. Nada mais justo.

(© O Estado de S. Paulo)

CARPACCIO ORIGINAL

Carpaccio: o molho do prato deve ser desenhado em formato de grade, com o garfo, para evocar os traços do pintor Kandinsky, que abriu caminho para a arte abstrata

Carpaccio: o molho do prato deve ser desenhado em formato de grade, com o garfo, para evocar os traços do pintor Kandinsky, que abriu caminho para a arte abstrata

 

Ingredientes

Carne
1.300 kg de contrafilé de boi novo
Sal a gosto

Molho

185 g de maionese
2 colheres (chá) de molho inglês
1 colher (chá) de suco de limão
2 a 3 colheres (sopa) de leite, aproximadamente
Sal e pimenta-do-reino branca moída na hora a gosto

Preparo

Carne

   Limpar muito bem a carne, retirando qualquer traço de gordura ou de nervos, obtendo assim um cilindro. A carne depois de limpa deve ficar com cerca de 650 g.

   Colocar a carne na geladeira, coberta com papel filme e só retirar depois que estiver gelada (nunca congelada).

   Cortar a carne em lâminas finas (não transparentes), com uma faca bem afiada.

   Dispor as lâminas sobre os pratos, cobrindo-os inteiramente.

   Pulverizar ligeiramente com sal e retornar à geladeira, pelo menos por cinco minutos.

Molho

   Numa tigela, colocar a maionese, o molho inglês, o suco de limão e bater manualmente, até os ingredientes ficarem bem emulsionados.

   Por fim, misturar o leite aos poucos, em quantidade suficiente para obter um molho de boa consistência, que possa ser espalhado com o dorso de uma colher de pau. Temperar com sal e pimenta.

Montagem

   Distribuir o molho sobre as lâminas de carne, com um garfo, desenhando traços em formato de grade. Servir em seguida.

Rendimento: 6 porções

(© O Estado de S. Paulo)

 

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