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A
CULINÁRIA ITALIANA
A
tradição por testemunha

Radicada desde a Idade
Média no Vêneto, na Itália, onde faz bom vinho e ótima comida, só agora a família de
Dante Alighieri, o autor de A Divina Comédia, volta a ter negócios na Toscana, terra de
seu glorioso ancestral
Por
J. A. Dias Lopes
Fotos: Gladstone Campos
Sete séculos depois, os Alighieri estão
retornando à Toscana, a região italiana da qual seu ascendente Dante, o genial autor de
A Divina Comédia, teve de fugir após ser condenado à morte por razões políticas, em
1300. Desde a Idade Média vivem na localidade de Gargagnago di Valpolicella, vizinha de
Verona, na Região do Vêneto. Ali o grande poeta ficou exilado durante alguns anos. Só
agora os Alighieri voltam a ter negócios na Toscana. Adquiriram 75 hectares em Cinigiano,
entre Val d'Orcia e Montalcino, em parceria com Sandro Boscaini, presidente da Masi, um
dos mais prestigiados grupos vinhateiros italianos. Já plantaram 18 hectares da uva
Sangiovese e esperam ter a primeira safra em 2004. Uma mágoa de vinte gerações os
impedia de reatar com a região de origem, apesar dos acenos de títulos honoríficos
chegados da terra arrependida. A briga era, na verdade, com a cidade natal do poeta,
Florença. O partido de Dante foi derrotado e ele era inimigo dos vitoriosos. Teve de
passar o resto da vida foragido para escapar à execução. Converteu-se no protótipo do
exilado e transmitiu seus ressentimentos à descendência. Em 1320, trocou Verona por
Ravenna, na Emilia-Romana, onde morreu e foi sepultado no ano seguinte. Apesar dos
esforços seculares, os florentinos sempre tiveram dificuldades em receber os restos
mortais do poeta. Após a morte de Dante, o juiz Pietro, um de seus três filhos, retornou
a Verona e comprou, em 1353, a propriedade Casal dei Ronchi, em Gargagnago. Nela teria
vivido com o pai. Até hoje a família reside ali, na antiga sede, cultivando seus 130
hectares de terras. Produz uvas, vinho, grappa, azeitonas, mel, castanhas, frutas,
conservas e dois tipos de arroz, vialone nano e carnaroli. Deve ser o mais antigo vinhedo
em exploração contínua do mundo. Seus tintos e brancos são agora elaborados sob a
direção técnica de Sandro Boscaini, da Masi, sócia majoritária dos Alighieri e
consagrada pela qualidade dos tintos, especialmente pelo Amarone della Valpolicella, seco,
e o Recioto della Valpolicella, doce.
Não por acaso, o sobrenome Alighieri também se associa a esses dois vinhos
famosos. No caso do Amarone, uvas lentamente "apassite", ou seja, transformadas
em passa, produzem um vinho exclusivo, concentrado, complexo, equilibrado, aveludado,
alcoólico e longevo. Chama-se Vaio Amaron. A Divina Comédia se compõe de 14 233 versos
e está dividida em três partes: o Inferno, com 34 cantos; o Purgatório, com 33; e o
Paraíso, também com 33. A forma métrica é a "terza rima". Acredita-se que o
Paraíso tenha sido escrito em Casal dei Ronchi. O atual patriarca da família se chama
conde Pieralvise Serego Alighieri. Os italianos o conhecem como vinhateiro, agricultor,
intelectual e colecionador de antiguidades. O sobrenome Alighieri quase desapareceu no
século XVI, quando o último descendente masculino do poeta, Francesco, ingressou na vida
religiosa. Mas, consciente do problema criado pelo voto de castidade que fizera, tratou de
desrespeitá-lo. Convenceu uma mulher de Verona a ter um filho com ele - e foi à luta. A
empreitada não teve sucesso. Do relacionamento nasceram três meninas - e nenhum menino.
Após reconhecer as filhas e conceder a cada uma o dote de 1 000 ducados, Francesco
redigiu seu testamento. Destinou tudo o que tinha - inclusive a parte em Casal dei Ronchi
- ao primeiro filho homem da sobrinha Ginevra. A moça se casara em 1549 com Marcantonio
Serego, agricultor progressista, introdutor da cultura do milho na região. O casal teve
quinze filhos, nove dos quais homens. No testamento, porém, o padre Alighieri impôs uma
condição. O menino teria de usar por último o sobrenome de Dante. Assim aconteceu. Em
vez de Alighieri Serego, como seria natural, o primeiro filho de Ginevra passou a assinar
Serego Alighieri. Hoje, a família enfrenta uma situação assemelhada. O conde
Pieralvise, seu último descendente masculino, possui apenas duas filhas mulheres - e
nenhum tio padre para tentar reverter a situação. Outras histórias deliciosas
ornamentam a saga dos Alighieri. Na Segunda Guerra Mundial, os alemães ocuparam a
propriedade da família e nela instalaram seu quartel-general. Acuados pelo avanço das
tropas anglo-americanas, prepararam a retirada. O alto comando nazista mandou explodir
todas as munições que os soldados não pudessem carregar. Como havia muita coisa, a
localidade inteira de Gargagnago iria pelos ares. Mas o pai do conde Pieralvise, que
coincidentemente se chamava Dante, era homem esperto. Convidou o general e o staff nazista
para um jantar, em Casal dei Ronchi, onde serviu vinho à vontade. Os alemães comeram
demais e se embebedaram.
Enquanto isso, a população de Gargagnago
jogava as munições na água de um canal. Até hoje o episódio é relembrado com uma
solene procissão religiosa anual. Lamentavelmente, os gulosos são maltratados em A
Divina Comédia. O poeta os coloca no Inferno, ao lado de outros pecadores. Em
compensação, seus descendentes sempre se notabilizaram por comer e beber bem. A
propriedade de Casal dei Ronchi inclui uma "foresteria", a velha residência dos
camponeses adaptada para pousada de luxo, com oito apartamentos e uma cozinha de primeira.
Do fogão e do forno saem pratos magníficos, como o risotto ai piselli e pancetta, feito
com arroz vialone nano, variedade típica da área de Verona, e uma torta doce, seca e
saborosa, chamada sbrisolona. Em compensação, Dante abençoava o vinho. O conde
Pieralvise, leitor incansável de A Divina Comédia, lembra aos visitantes que a bebida
foi mencionada no "Purgatório, Canto 25". "Com meu dizer tua mente se
conforma,/notando que do sol calor em vinho,/da uva ao sumo unido, se transforma",
escreveu o poeta. Seu Vaio Amaron, como os outros tintos elaborados pela Masi - o Amarone
Classico, o Campolongo di Torre e o Mazzano -, é obra-prima da enologia. Colhidas entre
15 e 20 de setembro, as uvas Corvina, Rondinella e Molinara se transformam em passa até
janeiro ou fevereiro. Ficam em esteiras de bambu, sob temperatura e umidade controladas.
Em três meses, perdem de 25% a 30% do peso. Em dezembro, a Corvina é atacada pela
Botrytis cinerea, fungo benéfico que retira o suco da fruta sem deixar o ar entrar,
concentrando o açúcar e os aromatizantes naturais. Cada uva tem uma função. A
Rondinella confere tanicidade e cor ao vinho. A Molinara transmite a acidez. Em janeiro e
fevereiro, as uvas são esmagadas e submetidas a duas sucessivas fermentações, uma
breve, outra longa. No Vaio Amaron, o açúcar da fruta se converte em cerca de 16 graus
de álcool. O tempo de maturação em tonéis de carvalho e de cerejeira vai de três a
quatro anos. A seguir, descansa cinco meses na garrafa. O resultado é um tinto
maravilhoso, que dignifica a saga dos Alighieri e reforça o prestígio contemporâneo da
família.
(© Revista Gula, edição 120)
RECEITAS
RISOTTO AI PISELLI E PANCETTA
INGREDIENTES1 cebola pequena picada
1 dente de alho
1 colher (sopa) de óleo de oliva
150 g de bacon picado
150 ml de vinho branco seco
300 g de ervilhas
380 g de arroz italiano vialone nano
1,5 litro (aproximadamente) de caldo de vegetais
2 colheres (sopa) de manteiga
4 colheres (sopa) de queijo parmigiano ralado
Pimenta-do-reino moída na hora a gosto
1 pitada de sal
DECORAÇÃO
Lâminas de bacon fritas
PREPARO
Numa panela, refogue a cebola e o dente de alho inteiro no óleo de oliva. Junte o bacon
e, assim que dourar, coloque o vinho. Deixe evaporar e adicione as ervilhas. Tempere com
pimenta e sal. Acrescente o arroz e deixe por alguns minutos, mexendo com uma colher de
pau. Descarte o dente de alho e junte uma concha do caldo quente. Deixe cozinhar,
colocando o caldo de legumes aos poucos à medida que o arroz for secando. Mexa com a
colher de pau. Quando o risotto estiver al dente, apague o fogo e junte a manteiga e o
parmigiano ralado. Misture e sirva quente.
(© Revista Gula, edição 120) |
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