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Sua
majestade, o culatello di Zibello
Parente do presunto cru, com perfume levemente adocicado, atraente maciez, baixa porcentagem de gordura e sabor incomum, o produto atrai admiradores famosos como Verdi e Tony Blair Nenhuma especialidade da rica salumeria da Itália - expressão usada naquele país para designar os frios em geral, sobretudo de carne suína - é tão exclusiva, deliciosa e amada quanto o culatello di Zibello. Os gastrônomos o saboreiam chamando de "rei" e o tratam por "sua majestade". Jamais receberam essa deferência gustativa outros extraordinários produtos da salumeria italiana, como os presuntos de Parma e San Daniele, o speck do Alto Adige e o salame de Milão, a mortadela de Bolonha e copa de Piacenza. O culatello tem parentesco com o presunto cru, mas difere deste. Sua matéria-prima é o patinho, a parte alta a anterior do pernil ou coxa do porco. Zibello é uma cidadezinha de aproximadamente 2.500 habitantes, localizada na província de Parma, na região da Emilia-Romanha. As vizinhas localidades de Busseto, Colorno S. Secondo, Polesine Parmense, Roccabianca, Sissa e Soragna, também estão autorizadas a elaborar a especialidade, mas não a batizam. Existem apenas 12 produtores credenciados, que fazem somente 7.000 peças por ano, contra as 8 milhões do presunto de Parma, por exemplo. Com sua característica forma de pêra, perfume levemente adocicado, atraente maciez, baixa porcentagem de gordura e sabor incomum, o culatello coleciona um elenco de admiradores famosos. O poeta e escritor italiano Gabriele d'Annunzio (1863-1938), tão venerado pelos líderes fascistas, declarava-se seu "cupidíssimo amante". Comparava-o, pela anatomia e delicadeza, à mama de uma bela mulher. O genial compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901), que nasceu em Busseto, autor das óperas Rigoletto, Il Trovatore e La Traviata, muitas vezes presenteou os amigos do exterior com peças da especialidade. O primeiro-ministro britânico Tony Blair sugeriu a inclusão de uma entrada de culatello com figo fresco no cardápio de um banquete que lhe seria oferecido em Roma. O presidente americano Bill Clinton comeu-o quase diariamente numa viagem à Itália. O papa João Paulo II recebeu um culatello de presente no Natal de 1997 e se encantou com o produto. A conselho dos médicos, entronizou-o na mesa pontifícia, em substituição ao gorduroso salame polonês que saboreava desde a ascensão ao trono de São Pedro. Ao contrário das outras jóias da salumeria italiana, o culatello permanece uma especialidade inteiramente artesanal e sazonal. É preparado entre 1.º de outubro e 28 de fevereiro. A elaboração coincide com o inverno, para aproveitar o frio e a umidade da estação. A região produtora se encontra às margens do Pó, o maior rio da Itália, com 652 quilômetros de extensão. Chama-se precisamente Bassa Parmense. Uma neblina densa e persistente a cobre diariamente. A mesma névoa que é odiada pelos habitantes, por reduzir a visibilidade e dificultar o trabalho no campo, transforma-se em bênção para o culatello. A ela se devem as características orgalolépticas - que impressionam os sentidos do olfato e paladar - típicas do produto. "A umidade climática incide diretamente no processo de maturação da nossa especialidade", diz Massimo Spigaroli, um dos 12 produtores e presidente do Consorzio del Culatello di Zibello. O presunto, ao contrário do culatello, requer ar mais seco durante sua feitura. Apesar do parentesco entre ambos, sugerido pelo emprego da mesma matéria-prima, as diferenças são marcantes. O culatello deriva de porco idêntico, do tipo pesado, puro ou descendente das raças Large white, Landrance e Duroc. Mas, enquanto o presunto aproveita o pernil inteiro, o culatello usa só uma parte dele. A carne descartada serve para a elaboração de outras especialidades regionais, como o menos cotado fiocchetto, embora igualmente saboroso. A exemplo do presunto, o pernil fresco deve necessariamente apresentar cerca de 5 quilos. No final da maturação, com a conseqüente desidratação, o peso se reduz para 4,3 a 3,6 quilos. A receita do culatello não oculta segredos. Todos os seus procedimentos são conhecidos. Mas raramente aparecem contrafações em outros lugares. O clima da região assegura a exclusividade. Sua majestade concede à neblina a função rainha. A fase de elaboração começa com a retirada da pele e gordura excessiva do pernil. A seguir, separa-se o patinho, refilando-se a peça para apresentar a característica forma de pêra. Depois, inicia-se a salga, que dura dez dias. A peça ainda é aromatizada com vinho e alho. Mas tudo isso se faz com parcimônia, para não haver excessiva influência no sabor natural da carne. Nos dois primeiros três dias, massageia-se seguidamente o culatello, para fazer o tempero penetrar. Segue-se um breve período de repouso e, então, ensaca-se a peça numa bexiga do porco. Finalmente, ela é amarrada com barbante nos sentidos lateral e longitudinal, a fim de fixar a forma de pêra. A fase de maturação transcorre sob temperatura crescente (de 14° C a 16º-18ºC) e umidade relativamente elevada. Passados 11 meses, o culatello está pronto. Mas os grandes apreciadores o preferem aos 14-16 meses. Asseguram que nesse ponto atinge as culminâncias do aroma, textura e sabor. "Após os 18 ou 20 meses, porém, essas características começam a desaparecer", ensina Spigaroli. "O sabor declina e se torna amargo." Assinale-se que o culatello possui nome irreverente. Em respeito à boa educação, diremos que é diminutivo de culo. Com o mesmo cuidado, traduziremos essa palavra para nádega ou traseiro. Conta a lenda que o nome foi dado num convento, em distante passado. Uma moça internada ali por desventuras sentimentais, recebeu dos pais um culatello. Cortou-o em lâminas finíssimas e ofereceu um prato à madre superiora. "Com que parte do porco se faz isto?", indagou a religiosa, enquanto mastigava com prazer. "Com aquela que fica na parte alta e posterior da coxa", explicou a moça. "Ah!, então me ofereces um traseirinho", conclui a madre superiora. Depois de saboreá-lo, teria afirmado: "O importante é comer sem pronunciar o nome feio." Na verdade, porém, a designação parece ter surgido de maneira espontânea, inspirada simplesmente pela anatomia do porco. Numa região onde existem localidades chamadas Ca' dei Gatti (Casa dos Gatos) e Paroletta (Palavrinha), o significado de culatello não espanta as pessoas. Ao contrário: acredita-se que a irreverência favoreceu seu sucesso. Produto de excepcional qualidade, o culatello existe há séculos. Na Idade Média, os Pallavicino, fidalgos influentes que controlavam um antigo território espalhado pelas atuais províncias de Parma, Piacenza e Cremona, despachavam o produto às cortes de toda a Europa. Um documento de 1322 menciona "eccellenti culatelli" entre os presentes de casamento que os condes de Zibello e os marqueses de Busseto deram ao primo Andrea dei Rossi. A sua popularização parece ter começado no século 16. Desde então, é consumido da maneira tradicional. Retira-se a malha de barbante que o envolve. Em seguida, a bexiga utilizada como invólucro. Se estiver muito seca e grudada ao culatello, convém mergulhar a peça durante uma hora na água, à temperatura ambiente, para facilitar a operação. Finalmente, seca-se bem com um pano de algodão. O passo seguinte consiste em envolver o culatello num pano de algodão branco embebido em vinho, de preferência branco e seco, deixando-o assim por dois ou três dias em lugar fresco e longe do sol. Convém ir renovando a umidificação. O culatello estará pronto para ser cortado em finas fatias. Quando sobra parte da peça, protege-se o lado cortado com um fio de azeite ou de manteiga. Saboreia-se o culatello com figo ou melão frescos, harmonizado com pão e manteiga. Alguns fãs admitem a presença de lascas de parmesão; outros desaconselham veementemente. Temperos que atrapalhem sua degustação, como pimenta, alcaparra e limão, são totalmente banidos. Vinho aconselhado por Spigaroli: um frisante seco, não muito aromático. (© O Estado de S. Paulo)
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