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  A CULINÁRIA ITALIANA

A ovelha da Máfia

Al Pacino e Marlon Brando em ‘O Poderoso Chefão’, de Coppola: elegância e boa mesa

Surgida entre agricultores e pastores da Sicília, a organização criminosa adotou a cozinha camponesa da região, provavelmente a mais antiga e a mais rica em especialidades da Itália

   Romances e filmes já falaram bastante da Máfia - organização criminosa formada na Sicília, Itália, a partir do século 18, quando a dinastia espanhola dos Bourbons conquistou a coroa daquela ilha e de Nápoles, no continente. A fragilidade do poder regional, aliada ao sentimento de autonomia da população, propiciou o surgimento de uma sociedade secreta, hierarquicamente ordenada, arregimentada em "famílias", que passou a atuar arbitrariamente no território. Sobrevivendo até hoje, suas ações se amparam na "vendetta" (vingança) e vários calibres de violência contra as pessoas que não querem se sujeitar a ela, e na milenar omertà (lei do silêncio) respeitada pela população rural. Mas a maioria dos trabalhos sobre a Máfia enfatiza sua ramificação americana, a Cosa Nostra que imigrantes sicilianos levaram para os Estados Unidos. Até sua cozinha já foi explorada, da montagem da salada ao preparo do macarrão.

   Um filme sempre lembrado é O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Na verdade, foram três. O primeiro e mais atraente, feito em 1972, narra a história do imigrante siciliano Don Vito Corleone, interpretado por Marlon Brando - que deixou a terra natal para "fazer a América" e ali se tornou líder da Cosa Nostra - e da ascensão de seu filho americano Mike, vivido por Al Pacino. Chefões e subalternos da organização criminosa foram retratados no cinema vivendo em Chicago, Nova York e outras metrópoles dos Estados Unidos que eles tumultuaram nas décadas de 20 e 60, tiroteando com a polícia. Vestem roupas elegantes, fumam charutos cubanos, bebem vinho tinto e comem bem. Mas pouco se tem falado da cozinha dos mafiosos que nunca saíram da Sicília.

   Surgida entre agricultores e pastores, era natural que a Máfia siciliana adotasse a dieta camponesa. A cozinha da região é provavelmente a mais antiga da Itália e talvez a mais rica em especialidades. Tem receitas à base de abobrinha, alcachofra, brócolis, fava, pimentões, tomates, enfim, usa muitos vegetais. É grande a variedade de frutas, destacando-se o prestigiado limão e a laranja vermelha, com sumo dessa cor, a uva de mesa e o figo-da-Índia. Próximos ao litoral, existem pratos de mar. Os habitantes da província de Trapani são famosos pelo preparo do atum, conservado em óleo e sal, e pelo emprego das ovas desse peixe na elaboração da bottarga; os de Messina são mestres em cozinhar o peixe-espada, grelhado ou frito. No interior da ilha, aparecem as carnes, sobretudo de caprinos e ovinos, guiados por pastores silenciosos. Entre os queijos, distinguem-se o pecorino e o ragusano, além da ricota. As massas jamais faltaram. Pode ter sido ali que começaram a ser preparadas na Itália, por ocasião da denominação árabe, nos séculos nono e décimo. Recebem molho de tomate e manjericão, às vezes enriquecido com berinjela frita; ou de sardinha, anchova, erva-doce, uva passa, pinoli e açafrão.

   O azeite e a azeitona sempre foram ingredientes obrigatórios. No sexto volume da obra Cozinha Regional Italiana, de 1987, editada em Bergamo, Stella Donati ressalta que uma das características da cozinha siciliana é o fato de um mesmo prato ser preparado em versão pobre e rica. "Típico exemplo é a caponata, originalmente uma salada de aipo, berinjela e molho de tomate agridoce", diz. "Também pode receber alcaparra, azeitona, bottarga, peixe-espada, lagosta, alcachofra e pontas de aspargo." Os vinhos regionais que acompanham a comida exibem a mesma capacidade de exaltação dos sentidos.

   São o Alcamo, Cerasuolo, Contea, Contessa, Eloro, Etna, Faro, Malvasia delle Lipari, Menfi, Moscato di Noto, Moscato di Pantelleria, Moscato de Siracusa, Regaleali, Santa Margherita di Belice e o célebre Marsala, desenvolvido no século 18 por influência inglesa.

   Desde o seu aparecimento, a Máfia siciliana senta à mesa com finalidades logísticas. Comendo e bebendo, planeja ações, discute insucessos, estreita vínculos entre as "famílias". Nas grandes cidades, realiza banquetes a portas fechadas, com algum militante vigiando a porta, para controlar a aproximação da polícia e grupos rivais. Nas pequenas comunidades, promove almoços com a aparência de reuniões entre amigos. Razões estratégicas mandam que esses encontros se repitam esporadicamente e raramente no mesmo lugar.

   Por isso, os banquetes urbanos precisam ser demorados e os repastos interioranos têm de incluir pratos de longo preparo - como a receita da ovelha cozida que publicamos. Na zona rural, os militantes acompanham em volta do fogo a elaboração da comida, bebendo e tramando. Em qualquer caso, nenhum assunto da pauta continuará pendente após a sobremesa.

   Um dos últimos banquetes da Máfia siciliana ocorreu em 1992, patrocinado por Riina Salvatore, líder da facção Corleonese. O chefão convidou "famílias" das cidades de Marsala e Mazara del Vallo, perto de Trapani, para traçar uma estratégia de combate a dois rivais. Um mafioso arrependido concedeu às autoridades de Trapani precioso relato sobre a cerimônia. Descreveu o chefão Riina como um homem de aparência serena, equilibrado nas palavras e amante da boa mesa. Durante toda a refeição foi cercado de amabilidades. A certa altura, alguém lhe tirou delicadamente a fruta da mão e a descascou para que ele a comesse com firmes dentadas. Foram servidos inúmeros pratos e vinhos à vontade. O banquete resultou em dezenas de execuções à luz do dia, em Marsala e Mazara del Vallo. Os adversários do chefão foram aniquilados militarmente.

   O impassível Riina seguiu ao pé da letra o código da organização criminosa.

   O chefão - também chamado de capo - precisa ser discreto. Nas atividades quotidianas, não pode aparentar pertencer à organização criminosa ou revelar seu status aos outros, exceto para os companheiros aos quais for apresentado ritualmente. Deve viver sem ostentação, como uma pessoa comum. Quando mandar matar, que dê a ordem com naturalidade, "como se pedisse para abater uma árvore". Atualmente, são raros os banquetes iguais ao de Riina. Para se proteger do estrago provocado pelos mafiosos arrependidos, os chefões se limitam a ter contato com a alta hierarquia, expõem-se cada vez menos aos militantes da base.

   Em artigo publicado na imprensa italiana, o procurador federal Ignazio De Francisci, da cidade siciliana de Agrigento, afirmou no início do ano que a Máfia da região continua a preparar pratos históricos nos seus encontros, como é o caso da ovelha cozida. Antiga especialidade de pastores, leva horas para ficar pronta, pois usa a carne fibrosa e dura da ovelha velha, a fêmea do ovino em final de vida, e não a do cordeiro, o macho jovem, suculenta e macia. Além disso, a receita manda trocar três vezes a água do cozimento, para eliminar a gordura. A última é utilizada em uma minestra (prato úmido, sem ser uma sopa) que precede a ovelha na mesa. As referências a esse alimento tosco aparecem em diversas investigações, particularmente as realizadas na província de Trapani. "Comer a ovelha cozida é descobrir um dos elementos fundamentais da Máfia" afirma De Francisci. "Serve para entender a lógica da organização criminal, impiedosa e dura como a vida do pastor siciliano, anárquico por vocação, contrário a toda forma de lei por instinto natural."

   Quando o chefão é preso, o cardápio não costuma mudar radicalmente. Por tradição, ele deve recusar os alimentos oferecidos pelas autoridades, desprezar tudo o que vem do Estado. Sempre que possível, come apenas o que lhe traz a mulher ou a família. Reparte os alimentos com os companheiros de prisão, externando solidariedade. Na década de 80, segundo De Francisci, um grupo de mafiosos das "famílias" de Marsala e Mazara del Vallo foi encarcerado no mesmo presídio. Dias depois, havia um grande refrigerador para conservar os alimentos perecíveis vindos de fora. "Ali se encontrava o melhor peixe capturado no canal da Sicília", diz. No passado, os mafiosos podiam comer nas celas dos outros. O endurecimento da repressão à Máfia acabou com essa liberalidade. Afinal, os convites serviam ao jogo do poder.

   Uma pessoa que suspeitava estar ameaçada de morte, porque falara demais, era convidada para comer na cela da outra. A recusa seria um gesto imperdoável.

   Aceitava a convocação e recebia acolhida afetuosa. Quase sempre lhe davam a melhor porção de comida. Saía convencida de que sua suspeita era infundada.

   Mas tanto podia ser poupada como "filata" - palavra que na gíria mafiosa significa enganada. Nesse caso, abaixava a guarda e era assassinada facilmente na prisão ou fora dela. No fim de seu artigo, De Francisci sublinha a importância do alimento na organização criminosa e propõe um estudo adicional: pesquisar a cozinha das autoridades que combatem a Máfia.

   Se forem sicilianas, o levantamento será redundante. Não haverá grandes diferenças entre a comida de mocinhos e bandidos. Ambos nasceram em uma região da Itália onde a devoção à boa mesa equivale ao genético amor à terra. (O Estado de S. Paulo)

Ovelha cozida

   Ingredientes Para a ovelha 3 kg de carne de ovelha velha (costela ou carré) Vinagre e água, em quantidades iguais, para deixar a carne de molho 2 cebolas picadas 1 dente de alho picado 60 ml de azeite de oliva 2 talos de aipo picados 500 g de tomates sem pele, bem maduros 150 g de lingüiça defumada em pedaços 1 pimenta-dedo-de-moça picada 1 folha de louro Água o quanto baste Sal a gosto Caponata para acompanhar (Dourar em azeite cubos de berinjela, aipo e cebola. Juntar cubos de tomate, alcaparras, azeitonas, pinoli, uva passa e temperar com vinagre balsâmico, sal, pimenta e uma pitada de açúcar.

   Cozinhar por cerca de 10 minutos, cuidando para os ingredientes não perderem a textura. Servir a caponata quente ou fria, conforme preferir) Para a minestra 80 g de toucinho picado 400 g de pão caseiro, de dois dias, cortado em fatias de no máximo 1 centímetro 400 g de queijo fresco (de ovelha ou cabra) cortado em fatias finas 2 dentes de alho picados 1 xícara de chá de salsinha picada Caldo do cozimento da ovelha quanto baste Folhas de hortelã picadas a gosto Sal a gosto Preparo da ovelha Tirar fora o excesso de gordura da carne e deixá-la de molho por 30 minutos numa solução de vinagre diluído em igual quantidade de água. Retirar a carne do molho, passar para uma panela e levar ao fogo com bastante água. Quando levantar fervura, trocar a água e ferver novamente. Repetir a operação pela terceira vez. Passar o caldo pelo coador e reservar.

   Numa panela de fundo grosso, murchar a cebola no azeite. Juntar a carne cortada em pedaços e deixar dourar. Colocar o aipo, os tomates, a lingüiça e a pimenta. Temperar com sal e ir incorporando o caldo do terceiro cozimento, aos poucos. Cozinhar lentamente, por cerca de 3 horas.

   Preparo da minestra No fundo de um prato refratário, distribuir o toucinho. Colocar em cima uma camada de pão e outra de queijo. Numa tigela, misturar o alho, a salsinha, a hortelã, a pimenta e o sal. Polvilhar esses temperos sobre o queijo e fazer novas camadas de pão, queijo e temperos, até quase completar o refratário.

   Finalizar colocando por cima, lentamente, um pouco do caldo quente, o suficiente para amolecer o pão. No fim, o prato deve ficar úmido. Levar ao forno aquecido a 200º C, até gratinar a superfície.

   Finalização Enquanto a ovelha cozinha na panela, retirar a minestra do forno e servi-la em temperatura moderada. Quando a carne estiver bastante macia, levá-la à mesa acompanhada da caponata. Rendimento: 6 porções. (O Estado de S. Paulo)

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