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  A CULINÁRIA ITALIANA

A Polenta (2)

Pietro Longhi eternizou o prato no quadro ‘A Polenta’, em que uma mulher do povo derrama da panela uma massa dourada

       Preparada com farinha de milho, água e sal, mexida lentamente para não formar grumos, a polenta era pouco apreciada no Brasil. Durante muito tempo seu consumo esteve restrito ao Rio Grande do Sul, por influência dos colonos do norte da Itália, terra natal da receita, que chegaram no século 19. Em Santa Catarina e no Paraná, o prato também era apreciado por descendentes dos mesmos imigrantes. Neste inverno, porém, São Paulo patrocinou a consagração informal da polenta. Quase todos os restaurantes de cozinha italiana da cidade passaram a oferecer pelo menos uma variação do prato.

       Promoveram até festivais, com diversas opções. Descobriram que a polenta, juntamente com o macarrão, risoto e pizza, apresenta prodigiosa versatilidade. Cozida, frita, assada no forno ou na grelha, servida quente ou fria, incorpora os mais diversos aromas e sabores.

        Pode ser comida sozinha, pura ou com molho, na condição de entrada, prato principal ou acompanhamento. Combina com molhos à base de tomate, ervilha, espinafre e outros vegetais; queijos, como fontina, gorgonzola, mascarpone e toma; cogumelos variados; carnes de aves, porco, javali e inúmeras caças. Na Itália, seu uso varia conforme a região. No Friuli, serve-se a polenta sob filés de rodovalho (linguado gigante, o turbot dos franceses) aromatizados com alho. No Vêneto, acompanha receitas típicas de bacalhau. Na Lombardia, é coroada com passarinhos no espeto, dourados na manteiga. No centro do país, harmoniza-se com a lingüiça de porco. No Piemonte, transforma-se em prato sublime. Sobre finas fatias de polenta coloca-se ovo frito em manteiga e lâminas de trufa branca.

       A polenta que conhecemos surgiu no norte da Itália em conseqüência da descoberta da América, em 1492. Começou a ser preparada três ou quatro décadas depois de Cristóvão Colombo regressar de sua viagem pioneira, levando sementes de produtos agrícolas desconhecidos, entre eles o milho. O navegador genovês alcançou o Novo Mundo procurando ouro e tesouros que não encontrou. Em compensação, achou um bem infinitamente mais precioso. Os astecas no México, os Maias da América Central, os Incas da Colômbia, que basearam suas civilizações na cultura do milho, já sabiam disso. Tanto que consideravam o milho um dom divino, venerando-o em liturgias religiosas. Na Europa, essa planta da família das gramíneas começou a ser cultivada pelos espanhóis da Andaluzia e dali se espalhou pelo resto do continente. Na Itália, chegou por Veneza, no início do século 16, obtendo sucesso instantâneo. Fácil de cultivar, crescendo rápido, saboroso e nutritivo, o milho matou a fome de sucessivas gerações. Seus grãos foram imediatamente socados e transformados em polenta. Alimento barato, virou comida de pobre.

       Amarela ou branca, a polenta acabou conquistando o paladar dos ricos e se espalhando em todas as classes sociais. A fórmula original ou variações da receita foram perpetuadas pela arte. O poema épico Orlando Furioso, que o italiano Ludovico Ariosto escreveu no século 16, constitui um marco dessa ascensão cultural. O herói morre após se empanturrar com um tipo de polenta.

       No quarto livro de Pantagruel, da mesma época, o escritor e humorista francês François Rabelais acrescentou uma "millorque" - farinha de milho cozida na água - no cardápio do cozinheiro Maschecroutte. No século 18, o dramaturgo veneziano Carlo Goldoni fez o personagem de Arlequim servidor de dois patrões preparar uma polenta. Seu contemporêneo e conterrâneo Pietro Longhi, pintor conhecido pela elegância, candura e cordialidade com que retratava ambientes burgueses ou populares, eternizou o prato no quadro A Polenta. Uma mulher do povo derrama da panela uma massa dourada, ao som de um instrumento de cordas.

       A paternidade da polenta é disputada pelas regiões do Friuli e Lombardia. A primeira apresenta documentos mostrando seu consumo de milho já em meados do século 16. A rival afirma que essas provas são insuficientes para atestar a primazia do prato. Os lombardos assinalam que Bergamo, uma de suas cidades, possui as mais antigas receitas italianas de polenta, datadas do século 17.

      Um ponto igualmente discutido é o nome do prato. Para alguns, viria do grego poltos, sopa feita com trigo ou cevada. Outros sustentam derivar do latim pollen, flor de farinha. Também se acredita vir de puls ou pulmentum, um mingau preparado com grão cozido de trigo ou fava. Era o alimento das legiões de César. Em suas expedições, os soldados carregavam apenas a farinha daqueles grãos e acrescentavam água ou leite dos locais onde estivessem.

      O gastrônomo romano Marco Gavio Apicio, que escreveu no século 1.º d.C. o mais importante receituário de seu tempo, intitulado "De re coquinaria", dá a receita de quatro pultes, uma delas feita com farinha (trigo ou fava), leite, mel e sal. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em seu Novo Dicionário da Língua Portuguesa, limita-se a registrar que polenta vem do vocábulo homônimo italiano e significa massa ou pasta de farinha de milho.

      Marcella Hazan, professora de culinária em Veneza, autora de Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, lançado no Brasil em 1997, pela Livraria Martins Fontes Editora, gostaria de encerrar essas divergências. Na sua opinião, polenta seria uma palavra intraduzível. Chamá-la de massa ou pasta ou mingau de farinha de milho é fazer "uso indelicado da língua".

      Na Itália, quando preparada em casa, a polenta assume caráter gregário, familiar. Comida de inverno, é preparada em grande panela de cobre, o paiolo, freqüentemente pendurado na lareira. Marido e mulher, tia solteira e avó viúva, crianças, adolescentes e eventuais parentes, todos ficam em volta do fogo. Observam gulosamente a farinha cair na água, a massa ser mexida sem parar com a colher de madeira. Basta uma pequena distração para formar grumos - uma calamidade difícil de contornar. Cerca de 45 minutos depois de iniciada, a polenta está pronta para ser colocada na "tafferia", uma tábua redonda, e ajeitada com uma espátula umedecida. A tradição manda fazer uma cruz no centro, antes de fatiar com um cordão. Pode haver sorteio para decidir quem ficará com a crosticina - a casquinha crocante que gruda no fundo e nas paredes do paiolo. Alguns países têm pratos assemelhados. No Brasil, a cozinha mineira prepara o angu, elaborado com farinha de milho muito fina, obrigatoriamente sem sal. Acompanha vários pratos regionais. (O Estado de S. Paulo)


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